sexta-feira, 16 de julho de 2010

Do Véu Islâmico aos Direitos Humanos num Estado de Direito

Este texto foi escrito para o blogue Delito de Opinião que, através de Pedro Correia, me honrou com um gratificante convite para aí publicar um post, na sua recente e enriquecedora rubrica dedicada à participação de Convidados. Aproveito o momento para agradecer a hospitalidade e a gentileza de um dos mais interessantes espaços colectivos da blogosfera, cuja pluralidade e qualidade justificam o hábito da sua leitura diária.

A proibição do véu islâmico no espaço público da União Europeia está no centro do debate, suscitando perplexidade entre muitos defensores dos Direitos Humanos que encaram o problema de forma linear, reduzindo-o à liberdade religiosa e de costumes. Contudo, o fenómeno tem uma dimensão muito mais consistente e elaborada do que a que resulta desta perspectiva ou, sequer, de uma outra, defendida por quem proclama a sua proibição. No que se refere a matéria de costumes, o respeito pelos Direitos Humanos e pela diversidade cultural não se adequa à legitimidade do uso do véu islâmico sob pena de todos os costumes serem admissíveis (ad absurdum, praticar nudismo no local de trabalho por quem defenda o naturalismo in extremis recorrendo a justificações filosófico-ecológicas). Por outro lado, no que se refere a matéria de direitos, liberdades e garantias, a proibição do véu islâmico não decorre de ilegítimas interferências nas liberdades fundamentais dos cidadãos, religiosa, individual ou de expressão. Atendendo a que a questão só se coloca nos países democráticos (não se tem reivindicado, pelo menos de forma pública e mediática, a liberdade de uso de trajes ocidentais na Arábia Saudita), a proibição do véu islâmico deve ser perspectivada no contexto da legitimidade democrática dos Estados de Direito. Os regimes democráticos defendem a igualdade entre homens e mulheres, denunciam e penalizam a violência de género, defendem o direito à identidade, praticam a transparência identitária no espaço público e caucionam os princípios da participação cívica e da responsabilidade social. Por isso, se as sociedades cuja arquitectura política assenta nestes pilares são escolhidas pelos imigrantes como países de acolhimento, à sua escolha deverá estar, à partida, associado o respeito pelos seus regimes políticos. Por isso, ao decidirem os espaços de acolhimento para destino de emigração, os cidadãos devem conhecer a sua ordem jurídica e ter consciência das mudanças sociais que a sua decisão implica e, no caso, em particular no que respeita às mulheres. Sem recurso ao mau princípio da diferenciação positiva, os direitos culturais das minorias ficam sempre, de qualquer modo, salvaguardados nos direitos que respeitam à privacidade da vida pessoal e familiar no espaço doméstico e do acesso ao ensino privado que pode ser ou integrar matéria religiosa. O uso do hijad (vestuário discreto e muito comum) não coloca ao ocidente qualquer objecção que também não tem criado dificuldades ao uso do chador (vestuário que cobre o corpo mas não o rosto); o que, na verdade, tem criado esta polémica é o uso do niqab (véu que cobre o rosto com excepção dos olhos) e da burka (que cobre o rosto de forma que também oculta os olhos). Ana Paula Fitas
(O texto foi hoje publicado, como se pode ler aqui, no Delito de Opinião)

12 comentários:

  1. Caríssima amiga Ana Paula Fitas,

    A Ana trouxe-nos neste texto uma temática bem actual e interessante através de uma análise lúcida e muito bem estruturada. Concordo inteiramente com a sua posição da ilegitimidade do uso do véu islâmico que cobre o corpo de algumas mulheres islâmicas à luz do Direito Humano da igualdade de género entre a Mulher e o Homem. Aliás, este objectivo da igualdade de género é um dos 8 Objectivos de Desenvolvimento do Milénio a que quase todos os países do mundo se comprometeram fazer singrar, por meio dos Estados signatários na ONU, em 2000 e previstos concretizar com o empenho das ONG's, dos Governos, das sociedades civis e dos alertas dos estudiosos até 2015! Muito está ainda por fazer e o tempo escasseia.

    Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
    www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

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  2. Cara Ana Paula Fitas
    Texto Sublime.
    Que tenha sempre dias felizes e inspirados.
    Um Abraço Amigo, Solidário, Grato e Feliz :)
    Ana Brito

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  3. E aqueles que já têm a cidadania plena desses países, há várias gerações, e mantêm os costumes culturais originais ?
    Só dentro de casa, em ambiente doméstico, é que podem praticar a sua cultura ?
    Nem tudo será mau, se o caminho a seguir for esse. Não existiriam alheiras em Portugal se os judeus as não tivessem inventado para enganar a inquisição, lembram-se ?

    E se uma família de pele morena, turca, por exemplo, se tiver fixado num país de louros e olhos azuis, há seis ou sete décadas ?
    Ah... já me esquecia... não são arianos.

    E porquê não proibir o kilt escocês ?


    Omar I'qbal

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  4. Carissimo amigo Nuno Sotto Mayor Ferrão,
    Obrigado pelas suas boas palavras que subscrevo... os objectivos do Milénio continuam a ser urgentes e o que há a fazer para, de facto, se concretizarem, é ainda imenso. Continuar a senda é o nosso caminho... por um mundo melhor para todos!
    Como sempre, as minhas melhores saudações :)

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  5. Cara Ana Brito,
    Grata pela generosidade das suas palavras, deixo aqui expressa a reciprocidade nos votos de dias felizes e inspirados :)
    Um abraço amigo.

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  6. Caro Omar I'qbal,
    Obrigado pelo seu comentário.
    No que respeita às gerações que possuem plena cidadania aplica-se, do meu ponto de vista, o mesmo princípio do respeito pela lei do Estado de Direito democrático e, tal como, há tempos, dizia publicamente um professor universitário islâmico, é necessário desenvolver a Educação para a Cidadania de modo a que todos entendamos o próprio conceito de cidadania como indispensável à coexistência pacífica em espaços onde o direito à igualdade, à identidade e à personalidade não sejam lesados por representações culturais que não valorizam os valores da liberdade, em espírito de partilha da transparência e de responsabilidade social. O exemplo que refere (as alheiras) são reflexo de estratégias identitárias que as minorias tendem a desenvolver em contextos repressivos e ainda hoje se concretizam por todo o lado - também, por exemplo, pela população turca na Alemanha... não é esse o problema como aliás compreenderá - e menos ainda o da questão da raça que tenta aqui introduzir sem qualquer contexto que o justifique ou sequer o uso do kilt escocês que não prejudica os direitos cívicos. Aquilo a que nos estamos a referir é ao respeito pelos Direitos Humanos, pelo Estado de Direito e pela legitimidade de, neste contexto, continuarmos a defender a igualdade de género e a combater as representações sobre a sexualidade em que assentam práticas discriminatórias que lesam os princípios do respeito pelos direitos fundamentais do cidadão entre os quais se incluem o direito à identidade e à personalidade. A mudança resultará de uma nova percepção da relação entre homens e mulheres em que os grupos sexuais deixem de se encarar como ameaçadores e o espaço público deixe de ser perspectivado como um espaço ameaçador. Lutamos por sociedades sem medo e nessa luta contamos com todos porque o que realmente queremos é um mundo melhor para todos... aproveito ainda para destacar a reivindicação muçulmana que recentemente foi apresentada publicamente no Canadá contra o uso da burka e que, presumo, decorre desta interiorização racional e pacífica da cidadania.
    Receba, com consideração, as minhas melhores saudações.

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  7. Cara Ana Paula Fitas,

    Trata-se de um post de inegável actualidade e de indiscutível clareza, quer quanto às posições que assume, no tocante à defesa da igualdade de género global,quer no concernente à Sua inquebrantável defesa dos direitos humanos.
    Mas, acrescento, não é apenas o post que merece os meua encómios e a ulterior citação na secção "A Ler Outras Cartas" no meu blogue, é também a firmeza e qualidade das respostas aos comentários que propiciou quer na "Candeia" quer no "Delito de Opinião"...A resposta ao Omar é disso um inequívoco exemplo.
    Só não lhe dou os parabéns porque sobre o tema era inevitável que V/ plasmaria a solidez a que sempre nos habituou e ...a que portanto, estaria, digamos, obrigada.
    Abraço de estima e admiração,
    OC

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  8. Caro Osvaldo Castro,
    ... é sem palavras excessivas que registo com emoção quase embaraçada as suas palavras que, vindas de quem vêm, se revestem de valor único e profundamente gratificante... por elas e antecipadamente pela anunciada referência na prestigiada rubrica "A Ler Outras Cartas" do Carta a Garcia, o meu sincero e sentido agradecimento.
    Receba, como expressão da minha grata admiração, Aquele grande abraço amigo.

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  9. ANF
    Devo dizer que não esperava qualquer resposta.
    Enganei-me. Como me enganei muitas vezes ao longo da vida.Que já é longa. Quase noventa anos. E, antes de voltar ao assunto que motiva estes comentários, permita que dê algumas opiniões sobre o seu blogue : É interessante, muito interessante, contudo, acho que tem um défice de contraditório. Os artigos de fundo merecem uma reflexão mais aprofundada por parte dos comentadores. Estes, não podem limitar-se a estar de acordo, não podem, simplesmente, corroborar e dar parabéns pela forma como os assuntos são apresentados. Tanta unanimidade não é natural. A APF corre o risco de ver o seu blogue transformado numa " pescadinha de rabo na boca ". E o blogue não merece isso porque, como já disse, é muito interessante. Por último, deixe-me dizer que cheguei ao seu blogue a conselho de conhecidos comuns.

    Admito que o meu comentário tenha sido demasiado radical, mas, devido à minha idade, por vezes, já não tenho muita pachorra. As minhas desculpas. E, já agora, deixe-me apresentar melhor, para que não fique a pensar que sou um provocador.

    Nasci em Mozambique. Na minha família somos ateus há várias gerações. Tive quatro filhos. Três raparigas e um rapaz. O rapaz morreu quando combatia os portugueses, integrado na guerrilha da Frelimo. As minhas filhas casaram e vivem hoje em três continentes diferentes. Uma casou com um judeu, outra com um cristão e outra, ainda, com um africano. Tenho oito netos e dois bisnetos. Um deles até já é ruivo e sardento, calcule.
    Consegui juntá-los quase todos na minha casa do Algarve, há dois anos. Não estavam todos porque numa família tão grande e tão diversa, anda sempre alguém por fora.

    E não foi necessário qualquer lei ou deliberação para que todos se entendam. Em várias línguas.
    Apenas é necessário uma coisa, e falo, como já viu, por experiência própria :

    Respeito pelas diferenças e costumes de cada um.

    Eu sei que este comentário já vai longo mas, ainda assim, atrevo-me a prolongá-lo, com sua licênça.

    Como já deve ter reparado, dos dezasseis municípios do Algarve, doze, ainda mantêm no brasão, as imagens de reis e raínhas mouras, ao lado das imagens dos reis cristãos. Nas raínhas mouras, o véu islâmico ainda lhes cobre a cabeça.
    Se por aí vier uma fúria legislativa, para acabar com os símbolos doutras culturas, lá terão que alterar esses brasões. Que ao menos alterem também o da Câmara de Évora, onde, supostamente, o Giraldo Sem Pavor, decepou as cabeças dos soberanos vencidos, e que ainda lá estão, ensanguentadas.

    Acabo aqui.
    Só voltarei a este blogue quando regressar do Canadá, depois de visitar uma das minhas filhas e netos. Lá para Setembro.

    E não entenda estas palavras como provocação.
    Nem como discordância dos direitos humanos.
    Nos países democráticos que refere, todos os dias fazem ouvidos moucos a esses direitos.
    Apenas se pretende satisfazer uma certa clientela eleitoral.

    Obrigado

    Omar I'qbal

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  10. Carissimo Omar I'qbal,
    Obrigado pelas suas palavras que honram este espaço e que me congratulo que possa e queira partilhar... gostaria que lesse o que aqui, agora, resgisto antes de partir para o Canadá e visitar a sua filha e netos... por isso, tentarei ser rápida mas, antes, faço votos de que tenha uma excelente viagem, uma gratificante estadia e um óptimo regresso.
    Quero que saiba até porque isso me dá muita alegria que não conheço a maior das pessoas que seguem e comentam este blogue - apesar da sintonia de pensamento que captou e que, por isso, me merece, uma expressão quiçá informal, afectuosa, de respeito e consideração por muitos dos leitores que por aqui passam. Agradeço-lhe profundamente a partilha da sua história de vida que respeito e admiro no conhecimento com que fiquei através da forma como a sintetiza. Tem razão quando refere que, por vezes, deixamos de ter "pachorra" para aguentar tanta demagogia que grassa pelo mundo e pelos meios de comunicação mas, acredite! que o não considero um provocador e menos ainda alguém que não respeite, de facto!, os Direitos Humanos que, bem o sabemos!, têm servido políticas menos respeitáveis do que gostariamos... contudo, carissimo Omar I'qbal, não podemos deixar de acreditar e de lutar... pouco a pouco, as sociedades têm registado mudanças sociais significativas que, qualitativamente, vão servindo para reconfigurar comportamentos colectivos mais próximos do que desejamos para uma coexistência de paz e de respeito por todos, nas suas diferenças e nas suas similitudes.
    A terminar, quero que saiba que considero relevantes para a compreensão da história dos povos e das culturas, os símbolos históricos identitários como é o caso dos brasões que, contudo, não penso deverem ser encarados como afirmações de projectos políticos ou de identidades estáticas nomeadamente porque o presente já implica muito mais riqueza e vivências do que o passado que os produziu. Quanto ao brasão de Évora, quero também que saiba que defendo ser de natureza agressiva e que não gosto que o mantenham como símbolo da cidade podendo apenas ser uma peça de museu e não um elemento exposto como marca do espaço público.
    Até Setembro, data em que espero a sua visita.
    Bem-haja!

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  11. Estimada Ana Paula,
    Belo post.
    Bem estruturado e a tocar no ponto certo: As manifestações religiosas discriminam as mulheres, apenas por o serem?
    Errado.
    A discriminação feminina praticada pelos devotos de Alá, não decorre do Q'ran nem de nenhuma das suas crenças. Decorre apenas do regime de propriedade em vigor ainda em sociedades pre-industriais e agora enquistadas em "catecismos" pretensamente religiosos.
    Tem toda a razão em dizer que os símbolos religiosos históricos foram expressão desses tempos e, agora, deviam estar nos museus como estão os instrumentos de tortura e de exclusão social.
    Quem se lembraria hoje de defender, ou de expor - a excisão feminina ou os pézinhos monstruosos da aristocracia chinesa? Ou os autos-de-fé da Inquisição?
    O regime de propriedade é que condiciona as matrizes ideológicas e que pretendem perpetuar o domínio de uns - neste caso, dos homens, sobre os outros. Neste caso, as mulheres.
    E repare como é duma eficácia a toda a prova: Sem qualque esforço, sem polícia, nem mais empecilhos, conseguem, duma assentada, segregar 50% da poulação. Reservando para si próprios TODA a PROPRIEDADE existene!
    Nem direito à propriedade têm.
    Não têm direito aos filhos que geraram.
    Não podem herdar nem legar em testamento. Daí que o divórcio é impensável...
    Então isto é defensável em sociedades democráticas?
    Misturar isto com alheiras, como se a estupidez e uma norma persecutória pudesse vir em auxílio de outra...!
    Cumprimentos, que o seu blog não carece de parabéns, nem de obrigados!

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  12. Caro MFerrer :)
    Um grande e sincero abraço amigo pelas boas palavras que aqui regista, em particular pela argumentação contundente e pertinente que sistematiza e que evidencia o cerne do problema...
    Muito, muito obrigado! :)

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