Em Portugal, a taxa de desemprego oficial atingiu os 15,9%, reiterando a urgência de uma análise objetiva e frontal do problema... Torna-se por isso, imperiosa a divulgação do que mais claramente se escreve sobre a matéria. É o caso do texto que aqui divulgamos, da autoria do MSE - Movimento Sem Emprego, cujo próximo plenário vai decorrer amanhã, dia 4 de outubro, pelas 18.30h no Parque Polivalente de Santa Catarina - Calçada da Combro nº82A (Lisboa). Vale a pena ler:
"Mais Desempregados, Mais Desobedientes
A pobreza, como afirmou Amartya Sen, não é só o estado em que uma pessoa não consegue ingerir os nutrientes necessários para ter uma vida saudável. É também o estado em que um individuo não consegue participar em actividades sociais nem ser livre de vergonha pública por não conseguir satisfazer as convenções sociais prevalecentes no meio em que se insere – tornaram-se comuns as referências à pobreza “escondida” ou “envergonhada” de quem tudo tenta para manter a ilusão externa de bem-estar material. A dignidade é a última coisa que muitos rendem. A visão emergente da pobreza afirma que a condição do pobre não se limita ao seu nível de rendimento – a condição de pobreza é igualmente afectada pela relação entre o individuo e o meio em que se insere. A exclusão social surge portanto como um factor preponderante na condição dos pobres. Um individuo pobre é aquele que não se consegue integrar nas actividades que estão no centro da vida social da mesma maneira que os outros. Um individuo pobre é aquele que não consegue exercer a plenitude dos seus direitos. Resta-nos portanto identificar os mecanismos que aumentam e perpetuam a pobreza, e as actividades à volta das quais orbita a vida social.
Os governos que se têm sucedido em Portugal têm consistentemente demonstrado pouca vontade e ainda menos capacidade de distribuir a riqueza e de permitir a ascensão social aos membros mais pobres da sociedade. E é esta incapacidade que condena uma secção considerável da população à exclusão social e subsequentemente para a desobediência civil, no mínimo, e por vezes ao crime, ao desespero e até ao suicídio. As estatísticas demonstram claramente que com a subida do desemprego, multiplicam-se os pequenos actos de revolta de quem se recusa a passar fome ou viver em prisão domiciliária apenas porque alguém decretou que são excedentes humanos – vulgo, desempregados. Por exemplo, nos primeiros seis meses de 2012 registou-se o dobro de passageiros a viajar sem bilhete em comparação com o mesmo período em 2011. Já a Carris, a STCP, o Metro de Lisboa e do Porto estimam que 42 mil passageiros viajam sem bilhete todos os dias. Face ao flagelo que é a falta de mobilidade dos desempregados e dos mais pobres em Portugal, o Governo e as entidades que gerem os transportes reagem com subidas de preços para extorquir ainda mais de quem pode pagar (e forçando muitos outros a deixar de poder), junto com maior fiscalização, sendo esta última medida igualmente uma razão para a subida do número de multas penalizando quem viaja sem pagar. Porém, devemos pôr estes números em contexto. A mobilidade está no centro da vida social. Com que moral é que um governo pede às pessoas que se tornem prisioneiros domiciliários porque este é incompetente demais para assegurar a mobilidade dos cidadãos, quer através da criação de emprego (para que possam pagar o preço cada vez mais exorbitante dos transportes mal-geridos) quer através da criação duma rede de transportes pública, competente e ao serviço da população? A capacidade de se deslocar para procurar emprego, para visitar familiares, entes queridos e amigos é central. É um direito. Direito esse que a subida do desemprego retira a uma secção cada vez maior da população. Este estado só cultiva a espiral de exclusão e desespero.
Mas a falta de mobilidade não é o único factor que limita os direitos dos desempregados. A fome em Portugal está igualmente a crescer exponencialmente. O consumo de proteínas está a cair drasticamente, e o número de pessoas que é obrigado a recorrer a instituições de caridade para se poder alimentar está igualmente a subir de maneira vertiginosa. O roubo de alimentos em supermercados disparou desde 2011. Sobem igualmente os casos de utentes de serviços hospitalares que não pagam as taxas moderadoras. Espera-se das pessoas não só que fiquem fechadas em casa, mas também que se alimentem de raios solares. Concluí-se que os governos neoliberais gostariam que os desempregados fossem plantas de vaso, daquelas que se guardam na varanda de casa. Mas as pessoas resistem.
Hoje, quando se fala em desobediência civil, conjuram-se imagens de manifestantes sentados no chão, recusando sair do caminho da polícia. Mas é isto tudo o que a desobediência civil pode ser ou até já foi? Thoreau, “pai” da desobediência civil, recusou-se a pagar impostos que alimentavam guerras injustas e foi para a prisão por isso. Ghandi usou-a na Marcha do Sal para dar um golpe pela independência económica dos trabalhadores indianos de impostos ingleses sobre o sal. E precisa esta desobediência de ser anunciada publicamente para ser resistência? Como enquadraríamos então as famílias alemães que esconderam judeus durante a Segunda Guerra Mundial? É menos desobediência civil porque foi feita em segredo? Podemos então concluir que a desobediência civil tanto pode ser económica e financeira como pode ser feita em segredo sem por isso perder o seu valor enquanto acto político que desgasta um sistema injusto.
O contra-argumento previsível é que estas pessoas não estão realmente a agir por necessidade mas sim por capricho. Isso é ignorar o sistema em que vivemos. A destruição das condições de vida da população não é por acidente mas por design. Qualquer acto da população que procure resistir e manter algum tipo de dignidade é portanto necessariamente político, mesmo que desenquadrado duma campanha maior e direccionada de desobediência civil.
A subida de incidências de roubo de comida e evasão de pagamento nos transportes são somente dois exemplos de como a subida do desemprego e da pobreza em Portugal estão a resultar numa subida de casos de desobediência civil a que cada vez mais cidadãos são obrigados recorrer para poderem sobreviver. A pergunta portanto é, a que ponto é que recorrer a actos de desobediência civil não é cada vez mais necessário para uma secção da população cada vez mais condenada à pobreza e à exclusão social? E até que ponto é que a subida do número de actos de desobediência civil não é de facto o resultado directo e inevitável das políticas de empobrecimento e desemprego do Governo? De qualquer das formas, um facto é inegável – o direito da população portuguesa a uma vida digna está cada vez mais a ser posto em causa e uma parte cada vez maior da sociedade encontra-se condenada à exclusão social e à pobreza."
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