Excertos da minha intervenção na IV Edição do "Pensar com Arte" (Alandroal):
"(...) segundo o autor de “Peter Pan”, J.M. Barrie (com a qual, aliás, se inicia também a obra de Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas):
"(...) segundo o autor de “Peter Pan”, J.M. Barrie (com a qual, aliás, se inicia também a obra de Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas):
«Quando
um bebê ri pela primeira vez, o seu riso quebra-se num milhão de pedaços que
saem pulando por ai. É assim que nascem as fadas.»
(...) Universais, os arquétipos em que assenta a
estrutura narrativa dos “contos”
integram seres fantásticos, dotados de poderes desejáveis mas não controláveis
pelos seres humanos, que sobreviveram ao tempo pelo facto de representarem
referências culturais fundamentais quer para a coexistência pacífica
indispensável à sobrevivência societária, quer para a compreensão dos desafios
perante os quais a dinâmica da vida coloca, desde logo, as crianças, e as expõe
ao longo de todo o seu crescimento e desenvolvimento. Analogicamente, para melhor entendermos o papel
dos personagens imaginários que integram, de forma estruturante, a maior parte
das histórias, podemos dizer que, no caso da religião, falamos de deuses e, no
caso da razão que se pretende subjacente à condução do imaginário na estrutura
narrativa dos contos, falamos de seres invisíveis, dotados de vida, por virtude
da arte ficcional da efabulação. (...) A importância da narrativa para o desenvolvimento
intelectual dos mais novos torna-se crucial se pensarmos que é a partir do que
vão conhecendo do mundo exterior que os pequeninos seres vão estruturando a sua
forma de organizar ideias e que toda a verbalização se constitui como elemento
integrável nessa narrativa - uma vez que ainda não detêm critérios culturais
que lhes permitam classificar o que ouvem e o que observam, como mais ou menos
autêntico e que a tudo, nessa fase, conferem significado (...). Confrontadas
com a diversidade de situações a que a interação humana as expõe, as crianças
precisam de ter disponível na sua mente, um quadro de possibilidades múltiplas
de ações/reações consideradas adequadas perante o novo e o inesperado (ou o
repetido mas não compreendido), a que possam recorrer não só para resolver
problemas de forma autónoma mas, também, como forma de reação para evitar a
reprimenda que rapidamente interiorizam como atitude dos adultos face às suas
respostas consideradas desadequadas. (...)
(...) [Porém, veja-se o que acontece] no
caso das produções contemporâneas em que [o mundo do] fantástico [evidencia o] afastamento da realidade [através do protagonismo de] “monstros” ou outros seres de natureza sobre-humana (como é o caso
de crianças que habitam áreas espaciais onde são dotadas de poderes
extraordinários e que remetem para o “futuro”),
sem o menor grau de proximidade com a vivência quotidiana das próprias crianças,
(condição indispensável para que se operacionalize a transferência que viabiliza
a “catarse” e a “sublimação”), porque a sua natureza, bizarra e aberrante, dificulta a
adesão complexa das emoções, minimizando o efeito das narrativas que, por muito
básicas e lineares, rapidamente vão cair no esquecimento de quem as vê ou as
ouve, no registo multimédia dominante que caracteriza a sua transmissão. De certo modo, o mundo da narração e da
literatura infantil caminhou no sentido de incentivar o distanciamento entre
personagens e ouvintes (ou leitores), provavelmente pela crença quase
positivista (extemporânea, porque deslocada no tempo!) de que o excesso de
fantasia pode afastar as crianças da realidade. E este é, se me permitem, um erro crasso porque,
efetivamente, o mérito e a competência da narrativa inerente aos contos ditos “de encantar” ou “de fadas”, consiste exatamente no anular desse distanciamento, pela
densidade descritiva dos cenários e da pluralidade de situações a que os
personagens estão sujeitos, permitindo à criança libertar-se do mundo
condicionado da realidade e projetar apenas o que de mais íntimo e menos
verbalizado a possui (sonhos, medos, dúvidas, curiosidades e inquietações), num
processo de libertação de inibitórios sentimentos que deixa a nu e sem vergonha
de ser exposto, o oceano de perguntas que pode, a pretexto dos dramas e
tragédias dos personagens, colocar aos adultos, para obter respostas que
utilizará, na solidão da sua individualidade, a título de contributos para a
construção de um lento mas firme processo de auto-esclarecimento, decisivo para
a formação da sua personalidade e para a criação de modelos de avaliação com
que tem que ir, incontornavelmente, pensando o mundo. (...)
(...) Pela sua competência descritiva e complexidade
narrativa, os chamados “contos de fadas”
são histórias dotadas de um potencial imagético quase cinematográfico que, do
ponto de vista antropológico, resultam de um trabalho sofisticado ao nível
literário (pensemos em Hans Christian Andersen, Charles Perrault ou nos
próprios Irmãos Grimm) sobre antigas crenças e superstições populares (estou a
lembrar-me do filme “Os Irmãos Grimm”
que tão bem caracteriza esta sua vertente) ou sobre problemas suscitados por
realidades sociais complexas que colocam o indivíduo perante situações difíceis
que urge resolver, como acontece, entre outros, nos “blocos” de casos que passo a citar: a) “Branca de Neve e os Sete Anões”, “Cinderela, a Gata Borralheira”, “A Bela e o Monstro” ou “A Bela Adormecida” em que a inexistência
de uma figura materna protectora e a exposição a figuras como as “más madrastras”, as “más irmãs” ou as “fadas más” e os pais ausentes (no sentido físico ou figurado)
colocam as protagonistas como figuras indefesas, perante sentimentos de
injustiça e sofrimento; b) “Hansel e Gretel” (história também
conhecida pelo título: ”A Casinha de
Chocolate”), “Rapunzel”, “A Princesa no Monte de Vidro” ou o “Gato das Botas” em que os protagonistas
são sujeitos a desafios que requerem a ousadia do espírito de iniciativa e do
exercício da auto-estima; c) “A Sereiazinha”, “Aladino e a Lâmpada Maravilhosa”, “O Rapaz que tinha um Segredo” ou “A Leste do Sol e a Oeste da Lua” em que os desejos dos personagens
requerem o voluntarismo e a determinação através da realização de sacrifícios
que implicam o cumprimento de penosas tarefas; d) “Sinbad, o Marinheiro”, “Ali-Bábá e os Quarenta Ladrões”, “A Rainha das Neves” e “O Anel de Bronze”, em que o esforço e a
coragem dos personagens são premiados com a realização dos seus desejos, muitas
vezes de forma imprevista.
(...) O que caracteriza estas composições é sempre, de
qualquer modo, um mundo complexo em que o personagem principal (uma criança ou
um jovem) se apresenta vitimizado pelo facto de ter sido surpreendido por realidades
que, pela sua natureza dramática, lhe impõem sacrifícios e criam ambientes de
desesperança, permitindo à criança uma projeção por analogia do seu “desconcerto” face ao mundo dos adultos,
cujas regras não são, naturalmente, evidentes, aos olhos da impetuosidade
infantil. Esta cumplicidade com os personagens, num quadro
de solidão e incerteza face à necessidade de alteração ou entendimento dessas
realidades, encontra então, nos contos clássicos, respostas que são, regra
geral, suficientes, no sentido de se constituírem como contributos preciosos
para que a criança construa a tríade cognitiva e comportamental de que precisa
para sobreviver e coexistir: 1) ser
paciente em relação à sua própria inquietude; 2) desenvolver
uma atitude pró-activa de auto-estima que lhe facilite a integração social
pacífica, sem perder a consciência crítica; 3) criar
resiliência através da esperança decorrente de acreditar na resolução dos
problemas.
Nos dias que correm, pedagogos e psicólogos,
educadores e pais, parecem desejar e pretender que as crianças, através de uma
espécie de “domesticação” forçada
pela ocupação maximizada dos seus tempos livres, sejam conduzidas,
automaticamente, aos resultados supra-enunciados - como se a personalidade de
uma criança pudesse reduzir-se à produção de um “reflexo condicionado” pela simples ocupação estruturada do seu
tempo, com práticas que, contudo, decorrem do leque de escolhas disponibilizado
pelos adultos. (...) De facto, tal como se constata em relação a uma
maioria significativa das novas gerações que, não tendo sido confrontadas com
privações materiais (porque os pais conseguiram níveis de vida capazes de as
resguardar das dificuldades de subsistência, com que, em particular em
Portugal, as pessoas estiveram familiarizadas até aos anos 70 do século XX),
não se revelaram mais competentes no que respeita à integração societária,
desenvolvendo, inclusive, formas graves de violência de grupo que se reveem,
por exemplo, no bullying e na violência no namoro e a que não é alheia
(antes, pelo contrário!) a influência dos modelos comportamentais mediatizados
pelos jogos tecnológicos, os media e
a própria cinematografia onde a violência emerge como forma de comunicação e de
resolução de conflitos, contrariando o que a sociedade e a escola procuram,
teoricamente, refletir em termos de valores democráticos, designadamente, a
solidariedade e o respeito pela diversidade. Cientes de que a educação determina (ainda que
não de forma exclusiva!) aquilo que podemos designar por “visão do mundo” e que subjaz às atitudes e práticas das crianças e
dos jovens, cabe por isso, trazer à reflexão a presente temática do papel da
narrativa que os contos materializam, através da qual se promove a comunicação
e a interação e se pode desenvolver a reflexão sobre as formas de responder às
dificuldades, reforçando a resiliência e incentivando a não-violência. (...)
(...) De facto, apesar do mundo de hoje se encontrar
repleto de materiais de lazer e entretenimento, a verdade é que, nos últimos
anos, se acentuaram as desigualdades sociais e, consequentemente, em virtude do
constante aumento de uma pobreza que se pensava pertencer ao passado, estão
também em crescendo, as dificuldades no que respeita à igualdade no acesso aos
meios didáticos. Porém, às nossas crianças falta também o tempo de
partilha de reflexão que os contos podem permitir através da audição, leitura e
debate nos ATL’s e nas escolas… e esse é um recurso que não podemos dar-nos ao
luxo de dispensar porque, para além de recursos materiais, de afeto e de
atenção, as crianças carecem, fundamentalmente, de espaço para o exercício da
liberdade de pensar, ouvir e tentar compreender-se a si próprias e ao mundo
onde vivem. E isso é trabalho de reflexão… é trabalho de
reflexão, essa dimensão pedagógica muitas vezes subvalorizada e à qual urge
conferir visibilidade, tornando-a uma prioridade do trabalho educativo,
independentemente do escalão etário com que se trabalha.(...)
(...) As crianças precisam das fadas e da magia porque
só o reino do imaginário lhes permite libertar-se dos constrangimentos do real
quotidiano e só as narrativas com heróis com que se possam identificar, lhes
viabilizam a possibilidade de encontrar formas de reação aos problemas e aos
desafios que o dia-a-dia coloca. Nos “contos
de fadas” não se ocultam os problemas sérios da vida como são a morte, a
doença, a pobreza, a injustiça, a crueldade, a tristeza ou o desalento… mas,
nos “contos de fadas” há também a
celebração do esforço, da persistência, da bondade, da compensação pelo
sacrifício, da alegria, da riqueza e do amor! Os “contos
de encantar” são as narrativas em que “as
fadas”, o acaso ou o mistério do inexplicável porque desconhecido, operam
como promotores de factos que compensam os sacrifícios e o sofrimento,
viabilizando a esperança e reforçando, no sub-consciente, a resiliência. É fundamental dar às crianças instrumentos que as
não façam fugir de si próprias para se esconderem (distraídas em jogos
desumanizados e repetitivos) mas que lhes permitam, pelo contrário, pensar,
imaginar, distanciar-se de si próprias e do seu mundo para, pensando em
personagens que lhes criam empatia em cenários complexos, se devolverem a si próprias
mais ricas e com mais recursos para enfrentar os dias, as famílias, a escola e
o mundo de competição e agressividade em que o ambiente social se está a
transformar, cada vez mais vertiginosamente. Se pensarmos com cuidado, no mundo de encantar
dos contos clássicos em que a magia e as “fadas”
são fatores e personagens que interagem com o real, nenhum personagem resolve
os seus problemas com violência (mesmo quando são vítimas da coação, da
violência psicológica ou de maus-tratos) e sem passar por um período de
dificuldades que, no final, consegue ultrapassar!… É essa a mensagem que é preciso que as nossas
crianças interiorizem: tudo muda!... tudo é passageiro e todas as dificuldades
se ultrapassam sem que necessitemos de recorrer à violência, com confiança,
auto-estima, perseverança, esforço e… bondade! Por tudo isto, penso que não vale a pena insistir
em desenvolver mais a mensagem que aqui vos trago: contem, leiam, comentem e
estimulem a leitura, em todas as áreas deste magnífico trabalho que é a
educação, dos chamados “contos de fadas”.(...)".
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