sábado, 15 de novembro de 2014

Repensar a Educação...

Excertos da minha intervenção na IV Edição do "Pensar com Arte" (Alandroal):

"(...) segundo o autor de “Peter Pan”, J.M. Barrie (com a qual, aliás, se inicia também a obra de Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas):
«Quando um bebê ri pela primeira vez, o seu riso quebra-se num milhão de pedaços que saem pulando por ai. É assim que nascem as fadas.»
 


(...) Universais, os arquétipos em que assenta a estrutura narrativa dos “contos” integram seres fantásticos, dotados de poderes desejáveis mas não controláveis pelos seres humanos, que sobreviveram ao tempo pelo facto de representarem referências culturais fundamentais quer para a coexistência pacífica indispensável à sobrevivência societária, quer para a compreensão dos desafios perante os quais a dinâmica da vida coloca, desde logo, as crianças, e as expõe ao longo de todo o seu crescimento e desenvolvimento. Analogicamente, para melhor entendermos o papel dos personagens imaginários que integram, de forma estruturante, a maior parte das histórias, podemos dizer que, no caso da religião, falamos de deuses e, no caso da razão que se pretende subjacente à condução do imaginário na estrutura narrativa dos contos, falamos de seres invisíveis, dotados de vida, por virtude da arte ficcional da efabulação. (...) A importância da narrativa para o desenvolvimento intelectual dos mais novos torna-se crucial se pensarmos que é a partir do que vão conhecendo do mundo exterior que os pequeninos seres vão estruturando a sua forma de organizar ideias e que toda a verbalização se constitui como elemento integrável nessa narrativa - uma vez que ainda não detêm critérios culturais que lhes permitam classificar o que ouvem e o que observam, como mais ou menos autêntico e que a tudo, nessa fase, conferem significado (...). Confrontadas com a diversidade de situações a que a interação humana as expõe, as crianças precisam de ter disponível na sua mente, um quadro de possibilidades múltiplas de ações/reações consideradas adequadas perante o novo e o inesperado (ou o repetido mas não compreendido), a que possam recorrer não só para resolver problemas de forma autónoma mas, também, como forma de reação para evitar a reprimenda que rapidamente interiorizam como atitude dos adultos face às suas respostas consideradas desadequadas. (...)
 
(...) [Porém, veja-se o que acontece] no caso das produções contemporâneas em que [o mundo do] fantástico [evidencia o] afastamento da realidade [através do protagonismo de] “monstros” ou outros seres de natureza sobre-humana (como é o caso de crianças que habitam áreas espaciais onde são dotadas de poderes extraordinários e que remetem para o “futuro”), sem o menor grau de proximidade com a vivência quotidiana das próprias crianças, (condição indispensável para que se operacionalize a transferência que viabiliza a “catarse” e a “sublimação”), porque a sua natureza, bizarra e aberrante, dificulta a adesão complexa das emoções, minimizando o efeito das narrativas que, por muito básicas e lineares, rapidamente vão cair no esquecimento de quem as vê ou as ouve, no registo multimédia dominante que caracteriza a sua transmissão. De certo modo, o mundo da narração e da literatura infantil caminhou no sentido de incentivar o distanciamento entre personagens e ouvintes (ou leitores), provavelmente pela crença quase positivista (extemporânea, porque deslocada no tempo!) de que o excesso de fantasia pode afastar as crianças da realidade. E este é, se me permitem, um erro crasso porque, efetivamente, o mérito e a competência da narrativa inerente aos contos ditos “de encantar” ou “de fadas”, consiste exatamente no anular desse distanciamento, pela densidade descritiva dos cenários e da pluralidade de situações a que os personagens estão sujeitos, permitindo à criança libertar-se do mundo condicionado da realidade e projetar apenas o que de mais íntimo e menos verbalizado a possui (sonhos, medos, dúvidas, curiosidades e inquietações), num processo de libertação de inibitórios sentimentos que deixa a nu e sem vergonha de ser exposto, o oceano de perguntas que pode, a pretexto dos dramas e tragédias dos personagens, colocar aos adultos, para obter respostas que utilizará, na solidão da sua individualidade, a título de contributos para a construção de um lento mas firme processo de auto-esclarecimento, decisivo para a formação da sua personalidade e para a criação de modelos de avaliação com que tem que ir, incontornavelmente, pensando o mundo. (...)
(...) Pela sua competência descritiva e complexidade narrativa, os chamados “contos de fadas” são histórias dotadas de um potencial imagético quase cinematográfico que, do ponto de vista antropológico, resultam de um trabalho sofisticado ao nível literário (pensemos em Hans Christian Andersen, Charles Perrault ou nos próprios Irmãos Grimm) sobre antigas crenças e superstições populares (estou a lembrar-me do filme “Os Irmãos Grimm” que tão bem caracteriza esta sua vertente) ou sobre problemas suscitados por realidades sociais complexas que colocam o indivíduo perante situações difíceis que urge resolver, como acontece, entre outros, nos “blocos” de casos que passo a citar: a)      Branca de Neve e os Sete Anões”, “Cinderela, a Gata Borralheira”, “A Bela e o Monstro” ou “A Bela Adormecida” em que a inexistência de uma figura materna protectora e a exposição a figuras como as “más madrastras”, as “más irmãs” ou as “fadas más” e os pais ausentes (no sentido físico ou figurado) colocam as protagonistas como figuras indefesas, perante sentimentos de injustiça e sofrimento; b)      Hansel e Gretel” (história também conhecida pelo título: ”A Casinha de Chocolate”), “Rapunzel”, “A Princesa no Monte de Vidro” ou o “Gato das Botas” em que os protagonistas são sujeitos a desafios que requerem a ousadia do espírito de iniciativa e do exercício da auto-estima; c)      A Sereiazinha”, “Aladino e a Lâmpada Maravilhosa”, “O Rapaz que tinha um Segredo” ou “A Leste do Sol e a Oeste da Lua” em que os desejos dos personagens requerem o voluntarismo e a determinação através da realização de sacrifícios que implicam o cumprimento de penosas tarefas; d)     Sinbad, o Marinheiro”, “Ali-Bábá e os Quarenta Ladrões”, “A Rainha das Neves” e “O Anel de Bronze”, em que o esforço e a coragem dos personagens são premiados com a realização dos seus desejos, muitas vezes de forma imprevista.
(...) O que caracteriza estas composições é sempre, de qualquer modo, um mundo complexo em que o personagem principal (uma criança ou um jovem) se apresenta vitimizado pelo facto de ter sido surpreendido por realidades que, pela sua natureza dramática, lhe impõem sacrifícios e criam ambientes de desesperança, permitindo à criança uma projeção por analogia do seu “desconcerto” face ao mundo dos adultos, cujas regras não são, naturalmente, evidentes, aos olhos da impetuosidade infantil. Esta cumplicidade com os personagens, num quadro de solidão e incerteza face à necessidade de alteração ou entendimento dessas realidades, encontra então, nos contos clássicos, respostas que são, regra geral, suficientes, no sentido de se constituírem como contributos preciosos para que a criança construa a tríade cognitiva e comportamental de que precisa para sobreviver e coexistir: 1)      ser paciente em relação à sua própria inquietude; 2)      desenvolver uma atitude pró-activa de auto-estima que lhe facilite a integração social pacífica, sem perder a consciência crítica; 3)      criar resiliência através da esperança decorrente de acreditar na resolução dos problemas.
Nos dias que correm, pedagogos e psicólogos, educadores e pais, parecem desejar e pretender que as crianças, através de uma espécie de “domesticação” forçada pela ocupação maximizada dos seus tempos livres, sejam conduzidas, automaticamente, aos resultados supra-enunciados - como se a personalidade de uma criança pudesse reduzir-se à produção de um “reflexo condicionado” pela simples ocupação estruturada do seu tempo, com práticas que, contudo, decorrem do leque de escolhas disponibilizado pelos adultos. (...) De facto, tal como se constata em relação a uma maioria significativa das novas gerações que, não tendo sido confrontadas com privações materiais (porque os pais conseguiram níveis de vida capazes de as resguardar das dificuldades de subsistência, com que, em particular em Portugal, as pessoas estiveram familiarizadas até aos anos 70 do século XX), não se revelaram mais competentes no que respeita à integração societária, desenvolvendo, inclusive, formas graves de violência de grupo que se reveem, por exemplo, no bullying e na violência no namoro e a que não é alheia (antes, pelo contrário!) a influência dos modelos comportamentais mediatizados pelos jogos tecnológicos, os media e a própria cinematografia onde a violência emerge como forma de comunicação e de resolução de conflitos, contrariando o que a sociedade e a escola procuram, teoricamente, refletir em termos de valores democráticos, designadamente, a solidariedade e o respeito pela diversidade. Cientes de que a educação determina (ainda que não de forma exclusiva!) aquilo que podemos designar por “visão do mundo” e que subjaz às atitudes e práticas das crianças e dos jovens, cabe por isso, trazer à reflexão a presente temática do papel da narrativa que os contos materializam, através da qual se promove a comunicação e a interação e se pode desenvolver a reflexão sobre as formas de responder às dificuldades, reforçando a resiliência e incentivando a não-violência. (...)
(...) De facto, apesar do mundo de hoje se encontrar repleto de materiais de lazer e entretenimento, a verdade é que, nos últimos anos, se acentuaram as desigualdades sociais e, consequentemente, em virtude do constante aumento de uma pobreza que se pensava pertencer ao passado, estão também em crescendo, as dificuldades no que respeita à igualdade no acesso aos meios didáticos. Porém, às nossas crianças falta também o tempo de partilha de reflexão que os contos podem permitir através da audição, leitura e debate nos ATL’s e nas escolas… e esse é um recurso que não podemos dar-nos ao luxo de dispensar porque, para além de recursos materiais, de afeto e de atenção, as crianças carecem, fundamentalmente, de espaço para o exercício da liberdade de pensar, ouvir e tentar compreender-se a si próprias e ao mundo onde vivem. E isso é trabalho de reflexão… é trabalho de reflexão, essa dimensão pedagógica muitas vezes subvalorizada e à qual urge conferir visibilidade, tornando-a uma prioridade do trabalho educativo, independentemente do escalão etário com que se trabalha.(...)
(...) As crianças precisam das fadas e da magia porque só o reino do imaginário lhes permite libertar-se dos constrangimentos do real quotidiano e só as narrativas com heróis com que se possam identificar, lhes viabilizam a possibilidade de encontrar formas de reação aos problemas e aos desafios que o dia-a-dia coloca. Nos “contos de fadas” não se ocultam os problemas sérios da vida como são a morte, a doença, a pobreza, a injustiça, a crueldade, a tristeza ou o desalento… mas, nos “contos de fadas” há também a celebração do esforço, da persistência, da bondade, da compensação pelo sacrifício, da alegria, da riqueza e do amor! Os “contos de encantar” são as narrativas em que “as fadas”, o acaso ou o mistério do inexplicável porque desconhecido, operam como promotores de factos que compensam os sacrifícios e o sofrimento, viabilizando a esperança e reforçando, no sub-consciente, a resiliência. É fundamental dar às crianças instrumentos que as não façam fugir de si próprias para se esconderem (distraídas em jogos desumanizados e repetitivos) mas que lhes permitam, pelo contrário, pensar, imaginar, distanciar-se de si próprias e do seu mundo para, pensando em personagens que lhes criam empatia em cenários complexos, se devolverem a si próprias mais ricas e com mais recursos para enfrentar os dias, as famílias, a escola e o mundo de competição e agressividade em que o ambiente social se está a transformar, cada vez mais vertiginosamente. Se pensarmos com cuidado, no mundo de encantar dos contos clássicos em que a magia e as “fadas” são fatores e personagens que interagem com o real, nenhum personagem resolve os seus problemas com violência (mesmo quando são vítimas da coação, da violência psicológica ou de maus-tratos) e sem passar por um período de dificuldades que, no final, consegue ultrapassar!… É essa a mensagem que é preciso que as nossas crianças interiorizem: tudo muda!... tudo é passageiro e todas as dificuldades se ultrapassam sem que necessitemos de recorrer à violência, com confiança, auto-estima, perseverança, esforço e… bondade! Por tudo isto, penso que não vale a pena insistir em desenvolver mais a mensagem que aqui vos trago: contem, leiam, comentem e estimulem a leitura, em todas as áreas deste magnífico trabalho que é a educação, dos chamados “contos de fadas”.(...)".
 



 
 
 
 

 

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