"CADA DIA UM POEMA
Depois do 25 de Abril,tornámo-nos todos democratas.
Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar, tornámo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupávamo-nos com os internados, protestávamos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas por cobardia, tínhamos pânico de que nos acusassem como os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes nos jornais. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como os abades das aldeias, continuavam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, porque haviam abolido a guilhotina."
António Lobo Antunes
Depois do 25 de Abril,tornámo-nos todos democratas.
Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar, tornámo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupávamo-nos com os internados, protestávamos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas por cobardia, tínhamos pânico de que nos acusassem como os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes nos jornais. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como os abades das aldeias, continuavam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, porque haviam abolido a guilhotina."
António Lobo Antunes
(via Rui Nuno no Facebook)
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