Tem pouco mais de 60 anos. Sofre de amnésia resultante de um trauma militar... é um homem bom que alega não se lembrar de metade da sua vida e se preocupa com isso, tentando levar os dias, a vida e o trabalho da forma mais pacífica possível. É solidário. Gosta de todos os colegas e todos gostam dele. Idiossincracias à parte, a sua proximidade da vivência rural, apesar dos muitos anos em espaço urbano, fizeram dele um caso singular. Trata, com respeito e ternura, por "meninas" as suas colegas que, quando o assunto é profissional e lhe causa perplexidade, passam a ser "doutoras"; aos colegas, homens, trata-os como camaradas de tropa. Diz sempre: "Bom-dia, boa-tarde" em jeito de cumprimento, a sorrir e, às vezes, por entusiasmo ou por nervosismo, bebe "o seu copito" sem consequências sociais de qualquer género sem ser a vontade de partilhar a alegria ou de "controlar os nervos". Nunca se excede. Pensa e enuncia as suas críticas sociais num misto de confusão ideológica. É justo e, na maior parte das vezes, certeiro na profundidade dos seus breves comentários emitidos em tom passageiro... O seu maior prazer é almoçar com os amigos na sede dos Deficientes das Forças Armadas onde cada acontecimento é, por ele, sentido religiosamente. Gosta de me contar esses encontros e sabe que eu percebo um bocadinho dos códigos e das regras do seu mundo... Um destes dias perguntou-me: "Oh doutora, mas a gente somos obrigados a declarar os poços?"... eu, surpreendida com a pergunta inesperada a meio do dia, respondi: "Não sei... penso que, tratando-se de um furo simples, não mas, se fôr mesmo um poço, é possível que sim, que seja obrigatório" e ele, apreensivo, retorquiu: "É um poço... daqueles redondos, com pedra no bordo mas, se o terreno é meu e está registado..."... "pois - retorqui- não tenho certezas... é melhor informar-se bem, amigo"... Depois desta inconclusiva troca de palavras, fui almoçar e, sem me aperceber, fiquei preocupada com a sua apreensão por saber a importância que, para ele, teria o problema. Quando regressei do almoço, em tom de brincadeira, disse-lhe: "Então, o poço já está registado?"... ele riu-se, com aquele sorriso saudável de homem sério que me faz sorrir a alma... e talvez por isso e por não querer que se enerve pelo sofrimento que sei que lhe causam as dúvidas, dei por mim a dizer: "Sabe? Talvez seja mesmo necessário... porque "eles", no meio militar, precisam de conhecer todos os sítios onde há água... e esse registo pode servir também para isso... não sei... estou a pensar em voz alta"... ele sorriu, encantado! Eu tinha dado sentido a uma obrigação absurda! Nem eu nem ele tinhamos certezas mas, essa possibilidade legitimava-lhe o esforço!... É um cidadão! ... e o seu patriotismo é qualquer coisa que dificilmente seria perceptível aos que tanto falam em patriotismo! Mais uma vez, este homem simples, na sua forma de ver o mundo, fez-me feliz.
Os antigos combatentes são um incómodo para o Poder. Mas inacreditavelmente para o poder de esquerda. Antes ainda se podia pensar que por terem desertado achavam-se heróis e os que ficaram umas bestas. Coitados a maior parte não tinha pais para os sustentar da Suiça ou em França. Hoje coitados andavam de cueiros ou eram ante-projecto no 25 de Abril.
ResponderEliminarAna Paula deste ao dares a esse camarada um pouco de atenção provavelmente promoveste o seu dia. Os ex-militares, em especial os ex-combatentes e em particular os Deficientes das Forças Armadas são um incómodo que eles escondem envergonhadamente debaixo dos tapetes um num local discreto. Porquê? Porque não tiveram dinheiro para fugir ou por entenderem que se o fizessem alguém iria em seu lugar. E é incómoda a duvida sobre se alguém morreu no nosso lugar.
Bem Hajas
Obrigado pelas tuas palavras e pela partilha das tuas reflexões, Benjamin... há verdades incómodas e homens que sofrem pela incapacidade dos poderes no que respeita ao enfrentar a realidade... e custa ver e admitir que a própria esquerda não sabe lidar com o problema. Mais uma vez, obrigado!
ResponderEliminarUm grande abraço e ... Bem-hajas!
Cara Ana Paula,
ResponderEliminarBela história, cheia de vida vivida, por mais ficcionada que possa ser. A reação tocante do Benjamim Formigo revela bem a qualidade e o inspirado sentido da sua prosa.
Se este ex-combatente existe mesmo, e se calhar existe, mesmo que V/ não o conheça, então ao lê-la, se o puder fazer, as lágrimas soltar-se-ão por sobre qualquer amnésia, em dor, mas também em alegria, pelo seu sentido reconhecimento.
Parabéns, abraço.
Caro Osvaldo,
ResponderEliminarHoje, é a segunda vez que fico sem palavras... primeiro, como bem diz, pela "reacção tocante" do Benjamin... e, agora, face à intensidade das suas palavras sentidas, solidárias e que muito me honram... Muito, muito obrigado!
Um grande abraço.
Eu sei!
ResponderEliminarTu sabes!
Ele/ela/você sabe!
Nós sabemos!
(…)
Eles/elas/vocês sabem…
que conjugar o “saber” da vida, pelo seu realismo, pode ser coisa tão dura como esteticamente bela.
A crueldade, por mais forte que seja, remete-nos a um senso estético e distanciativo transendente.
A Sophia escreveu… e o Farncisco cantou :
"Vemos, ouvimos e lemos.
Não podemos ignorar
(…)
A linguagem do terror
(…)
A bomba de Hiroshima
vergonha de nós todos
reduziu a cinzas
a carne das crianças.
(…)
D'África e Vietname
sobe a lamentação
dos povos destruídos (…)
dos povoso destroçados".
Servida de forma tão realista e sublime, Sophia define a “chave dessa abóbada estética” terminando assim:
"Nada pode apagar
o concerto dos gritos.
O nosso tempo é
pecado organizado".
- Porquê esta viagem ao mundo da estrutura e da harmonia da Língua Portuguesa?
- Que tem isto a ver com um Homem sensível, de peito aberto, amigo e de olhos fundos?
- Haverá alguma afinidade entre essas coisas e uma pequena aldeia alentejana, “encontrada” entre estêvas e castros, que viu nascer um menino roubado para a guerra?
- Que há de singular nessa escultura biológica e sensível, arranhada pelas garras de um ditador?
Talvez, um conjunto de singulares pessoas, mães chorando “cloreto de sódio”, marfim expurgo misturado com seiva de embondeiro e hemoglobina (de todas as cores!)…
Ou apenas dois meninos que não sabiam a que horas o pai chegava para jantar? ... e passaram muitos e duros anos sem que ele chegasse! Acreditem!
Talvez (digo eu, agora!), alguma falta daquele refresco de cravos, sonhado na madrugada do capitão Maia!
Manuel :)
ResponderEliminarObrigado!... fico, naturalmente!, sem palavras com este teu testemunho :)
Obrigado, Manel! Obrigado!
Um grande abraço amigo!