Surpreendeu-me ouvir, ontem, comentadores e políticos que, pensando-se "de esquerda", argumentaram com a mesma infundada e ridícula retórica a que todos os agentes repressivos, autoritários e violentos recorrem, quando pretendem justificar os actos de desrespeito pelos Direitos consagrados democraticamente. A este propósito, seguramente, a "direita" ripostaria ser efectiva ingenuidade da minha parte, uma vez que desordem, violência e desrespeito são atitudes que tendem a identificar com a esquerda que é, na sua perspectiva, desobediente, desordeira e desrespeitadora... curiosamente, para dar um exemplo paradigmático, foi esta a imagem e a representação que, historicamente, afastou, já nos meados do século XX, os anarquistas do panorama político com visibilidade pública! Infelizmente, talvez por mero e menor oportunismo eleitoralista ou, na verdade, por insustentabilidade e credibilidade ideológica, parte da dita "esquerda" conformou-se com esta representação cujo teor se aproxima do que, noutros contextos, classificariam como xenófobo - para não dizer marginal ou delinquente. E, portanto, entre outros, comentadores como Manuel Loff e políticos como Miguel Portas (numa primeira intervenção sobre o caso) vieram alegar, relativamente à violência que ontem marcou, contra Vital Moreira, a evocação do 1º de Maio, que o facto era previsível na medida em que o contexto de desemprego e crise explicam a agressividade contra um representante do Governo... mais surpreendente ainda, foi ouvir as vergonhosas declarações de Jerónimo de Sousa, actual Secretário-Geral do PCP, e outras, como as de putativos militantes ou simpatizantes de esquerda, alegando que o PS deveria ter acautelado a ocorrência, não indicando Vital Moreira como um dos seus representantes na manifestação da CGTP! Antes de mais, convém dizer que, afirmações deste género descredibilizam as forças políticas de que estes protagonistas fazem parte e que, além disso, denotam que o projecto social e político que defendem para a sociedade arrasta, na sua perspectiva, a ocorrência de uma compreensível violência social que não é difícil perceber que só poderia ser legitimada no contexto da repressão política! Por tudo isso, ontem, a Esquerda viu traídos os valores em que diz acreditar, em resultado da mais gratuita, oportunista, injusta e indigna postura eleitoralista. Agora, se a ilusão dos discursos populistas desta esquerda na defesa dos mais desfavorecidos, dos pobres e dos trabalhadores arrancava simpatias à esquerda ideologicamente coerente e responsável, a verdade está à vista. A Esquerda não acredita nesta gratuitidade da violência e o fundamento da sua existência decorre da negação radical da agressão e repressão como meios de exercício do poder... por isso, as leituras e comentários deste teor que ontem foram, diversamente, proferidas, tiveram, inevitalmente, como consequência, o facto de agora já não ser possível ao eleitorado acreditar que estas pessoas e entidades defendam, efectivamente, um projecto social sustentado capaz de rectificar o sistema, conduzindo a uma sociedade mais democrática, mais equitativa e mais justa! ... e a responsabilidade do impacto socio-político destas atitudes hostis, agressivas e discriminatórias, é, exclusivamente dos próprios que, tentados pela facilidade demagógica, deixaram, afinal, cair as máscaras!
Nos jogos (confrontos) das identidades, sejam elas políticas, profissionais, clubísticas, de género, de gang, de bairro ou de qualquer outro factor de agrupamento, o "fair play" é sempre problemático em sociedades de pouca maturidade democrática, pois transporta o que o pratica para um território neutro, de ninguém. O cimento dos grupos de identidade é tanto o que os aproxima os seus membros entre si como o que os distingue dos outros. Por isso o confronto com o outro sempre foi um importante agente de identificação, como, no futebol, muito bem precebeu e praticou o senhor Pinto da Costa, a quem nunca vimos publicamente criticar os dislates internos e muito menos pedir desculpas a alguém.
ResponderEliminarA prática desse "fair play", que se traduz no colocar determinadas regras e valores acima dos nossos interesses de grupo, implica uma maturidade (neste caso de cidadania democrática) que a maioria das identidades grupais não possui e mesmo que os seus líderes a tenham, estão constragindos pelo sentimento grupal face ao outro (frequentemente chamado de adversário, mas sentido como inimigo). A resistência em criticar o sucessido, a tendência para a desculpabilização, é uma estratégia de reforço da unidade interna e do poder no contexto dessa unidade. É um espírito de clã, que se faz sentir por todo lado na sociedade portuguesa e que revela o estádio ainda embrionário da maturidade democrática que não sabe (ou se sabe, não pode) reconhecer a importância do "fair play", ou seja, a importância de jogar dentro das regras democráticas e de as defender acima dos seus interesses de grupo quando elas são postas em causa.
Estes comportamentos que agora presenciámos ocorrem diariamente em Portugal nos mais variados contextos. Por isso, e apesar de tudo, existe uma certa admiração por alguns exemplos que nos chegam da velha Albion.
Excelente comentário, A.C. Valera. Muito obrigado. A análise sociológica destes fenómenos de grupo fica assim, também, explicada aos leitores de forma útil, clara e lúcida.
ResponderEliminarCara Ana Paula
ResponderEliminarPartilho dos seus sentimentos - até porque também sou um admirador de Ghandi, Lanza Del Vasto e Martin Luther King. Nada justifica a agressão a Vital Moreira ou a quem quer que seja e as declarações a que assistimos fizeram-me lembrar a daqueles juízes que, ao julgarem um violador, tinham o desplante de acusar a mulher violada de ter provocado a barbaridade de que foi vítima, porque usava uma mini-saia... Mas não deixo também de pensar no ex-sociólogo (ex...?) Augusto Santos Silva e nas suas edificantes metáforas relativas ao tratamento dos adversários: malhar na oposição!. Talvez fosse ele - ou melhor ainda, Vitalino Canas, o provedor do trabalho temporário, essa espécie de mercador de escravos pós-moderno... - a melhor escolha para o rito dos cumprimentos formais. Eu sei que a Ana Paula vai pensar que eu acabo por reproduzir os argumentos que digo criticar, mas não imagino porque raio a tomada de decisão do PS fez recair a escolha deste 1º de Maio, e para estas funções, sobre um ex-comunista, ex-anti-europeísta, candidato a eleições europeias que diz não querer discutir política nacional (esse imenso pântano onde medra a corrupção), que será, justamente, onde a previsível brutalidade e ignorância dos agressores seguramente reconhece a origem dos seus males... Escapa-me a intencionalidade de certas coisas. É fácil arranjar rostos para o mal que nos aflige. Para os agressores de Vital Moreira foi fácil. Infelizmente.
Francisco Oneto
Caro Francisco Oneto,
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário que contribui, de diversas formas, para a reflexão sobre a complexidade da realidade portuguesa dos nossos dias, nomeadamente no que respeita ao recurso à demagogia e à gratuitidade com que, excessivamente, se tornam "juízes os que as fazem criminosas" (excerto de uma quadra de António Aleixo que me ocorreu ao ler o exemplo que refere). De facto, muito há a fazer para que a democracia se interiorize, de forma séria e credível, no nosso país - o que integra, também, naturalmente!, o panorama político nacional. Neste contexto, diria sobre a escolha de Vital Moreira como membro da delegação socialista, que esse facto não teria sido objecto dos acontecimentos "de que se fala" se, efectivamente, a Democracia e o respeito pela legitimidade do pluralismo político, fossem, não apenas palavras decorativas mas, expressão de um pensamento, de uma convicção e de uma forma de ser e de estar.