A violência é, se assim podemos dizer, gestora da organização social. Podemos constatá-lo na história da humanidade ao ponto de verificarmos a sua existência como um factor estrutural das relações sociais e dos comportamentos... tinha razão Friedrich Nietzsche ao enunciar a sua "vontade do poder" como modo de apropriação do mundo... contudo, o que surpreende é o facto de, mais de meio século depois de uma permanente insistência em apelos à paz, continuarmos a assistir ao recurso à violência como forma processual e legítima das relações sociais, laborais e políticas. Por isso, quando se fala de Guantanamo, quando o mundo se espanta e regozija com a intenção de Barack Obama em encerrar as suas instalações e proibir a tortura e quando todos nós nos sentimos defraudados com os retrocessos a que o Senado norte-americano obriga a actuação do Presidente dos EUA, constatamos que, apesar da realidade assustadora a que nos referimos sempre que se fala em violência, é a ela que se recorre como mecanismo de gestão económica e política. Os múltiplos rostos da violência, mais ou menos in-visíveis ou dissimulados, desempenham nas posturas socio-políticas e, consequentemente, cívicas, um papel ambíguo que se esconde e revela hoje sob a capa do velho pretexto da necessidade que justifica os mais pequenos e os maiores detalhes da vida social em que se reflectem, de facto, no seu todo, valores e práticas contemporâneas. Como um binóculo que de um lado aproxima e do outro afasta, a violência é um dos nexos da persistência das respostas à qualidade dos estímulos... no plano da comunicação social - de que ontem foi exemplo a excelente reacção do Bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, à continuada violência de Manuela Moura Guedes (ver Filipe Tourais no País do Burro), em termos do exercício da autoridade (ver Francisco Seixas da Costa no Duas ou Três Coisas), no plano político (ver JMCorreia Pinto no Politeia) ou no plano laboral (ver Carlos Santos no Valor das Ideias)... se a todos estes exemplos somarmos o reconhecido dogmatismo religioso protagonizado pelas declarações mais ou menos dissimuladas da maior parte dos representantes das confissões religiosas, a questão que se coloca é a de saber, entre legitimidades ao abrigo de múltiplos argumentos que institucionalizam a violência como regulador social, que juízo ético ou moral justifica o apontar da delinquência como fenómeno gratuito, isolado e estranho à lógica institucional das relações humanas?... é que, nesta perspectiva, todas as manifestações exemplificadas surgem como respostas violentas adequadas aos diferentes contextos, ficando apenas o vazio no lugar do exemplo, da pedagogia e da própria autoridade.
Cara Ana Paula
ResponderEliminarEstou consigo! Sinto-me francamente sensibilizado com o que escreve. A ideia da "violência como gestora da organização social" merece reflexão e exploração ulterior. Não sei se a si se coloca também estre problema, mas o que verdadeiramente sinto é que, por força dos compromissos que assumimos para a nossa sobrevivência - como que apanhados na rede de Indra... - somos permanentemente submergidos... pelo silêncio a que a gritaria em redor nos obriga... e somos, de alguma forma, forçados a pactuar, a consentir que o curso da nossa existência seja ditado, como diz, pela institucionalização da violência como regulador social. Pessoalmente, confesso, abandonei já toda a esperança, qual prisioneiro à entrada deste campo de concentração que é o nosso quotidiano... Mas enfim, será talvez apenas um véu ilusório, maya, matrix...
O Karl Polanyi escreveu em "A Grande Transformação" que as "sociedades primitivas são, num certo sentido, muito mais humanas do que a sociedade de mercado, pois não exite nelas a ameaça da inanição individual" (cito de memória). Haverá pior manifestação de violência do que a fome? Jean Ziegler falou na "doutrina da escassez organizada", ideia que vem muito a propósito desta sua imagem da violência como gestora da organização social...
Obrigado.
Francisco Oneto
Estimado Francisco,
ResponderEliminar... quem agradece sou eu!... pelas extraordinárias palavras e reflexões que aqui partilha e que, sinceramente, subscrevo sem reservas. Obrigado!
Um abraço solidário e amigo.
Volte sempre!
Como tudo aquilo que poderei dizer é tão pouco relativamente à vasta ambiguidade de questões aqui lanças por si, apenas “instigaria” um pouco mais esse “dogmatismo religioso”...E, a propósito de Friedrich Nietzsche, relembro: «O louco. Nunca ouviram falar daquele louco que, à luz clara da manhã, acendeu uma lanterna, correu para a praça do mercado e se pôs a gritar incessantemente: «Ando à procura de Deus! Ando à procura de Deus!» Estando reunidos na praça muitos daqueles que, precisamente, não acreditava, em Deus, o homem provocou grande hilaridade. «Será que se perdeu?», dizia um. «Será que se enganou no caminho, como se fosse uma criança?», perguntava outro. «Ou estará escondido?» «Terá medo de nós?» «Terá embarcado?» «Terá partido para sempre?», assim exclamavam e riam todos aos mesmo tempo. O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. «Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu», gritou! «Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! (…)» (In: F. Nietzsche (1998). A Gaia Ciência (trad. Maria Helena Rodrigues de Carvalho, Maria Leopoldina de Almeida, Maria Encarnação Casquinho) Lisboa: Relógio D’Água. Pp. 139-140).. Lembro-me de ter lido nalguma análise que “a Morte de Deus” era como uma curva dramática na evolução da espécie humana (a tal desvalorização dos valores morais e não só). É por isto que na obra A Vontade de Poder o “seu” problema não é o da “verdade”, mas o da “veracidade” a qual serve de suporte ao suicídio da moral... E depois ainda temos “(…) palavra «super-homem» como designação de um tipo de suprema perfeição, em contraste com homens «modernos», com homens «bons», com cristãos e outros niilistas – uma palavra que na boca de um Zaratustra, do aniquilador da moral, se torna uma palavra muito meditativa – foi entendida quase em toda a parte, com toda a caudura, no sentido daqueles valores cuja antítese fiz aparecer na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo «idealístico» de uma qualidade superior de homem, meio «santo», meio «génio» (...)” (Idem, pp. 162-163)…Mas no fundo: “a questão que se coloca é a de saber, entre legitimidades ao abrigo de múltiplos argumentos que institucionalizam a violência como regulador social, que juízo ético ou moral justifica o apontar da delinquência como fenómeno gratuito, isolado e estranho à lógica institucional das relações humanas?...”. Obrigada pelo espaço de reflexão. Abraço.
ResponderEliminarObrigado pelo comentário, Jeune Dame... este espaço de reflexão é possível também pela qualidade dos seus comentários.
ResponderEliminarAbraço.