Nota Prévia: A poucos dias da acesa polémica suscitada por "Caim" de José Saramago, hoje saiu mais um livro potencialmente polémico que também ainda não li: "A Fúria Divina" de J.Rodrigues dos Santos. Ressalve-se, antes de mais, que o texto que aqui vos apresento não tem qualquer intento comparativo entre autores, seja ao nível da qualidade literária ou sequer do posicionamento ideológico e reitere-se que não li nem um nem outro. O que me ocorre dizer está a jusante das obras enquanto tal e refere-se apenas à exposição de uma perspectiva sobre o facto de estarmos perante dois livros que interpelam dois dos mais célebres "Livros Sagrados", a saber, Bíblia e Corão. Posto isto, aqui fica o registo desta reflexão:
Quando os livros, nomeadamente, os ditos "Sagrados", são apresentados como códigos de valores, exemplos de práticas e modelos de comportamentos, o seu sentido literal é, inequivocamente, em termos lógicos, fundamental. Penso que é para esta dimensão do problema
que os livros "Caim" de José Saramago e "Fúria Divina" de José Rodrigues dos Santos, chamam a nossa atenção... a propósito de narrativas diferentes e de ficções distintas e independentemente dos contextos diversos em que, Bíblia e Corão, se foram construindo. Contudo, esta tem sido, uma perspectiva ausente dos debates proporcionados sobre o tema. Estranhamente, diria! De qualquer modo, num mundo que precisa de, continuamente, se pensar a si próprio, faz sentido que a sociedade possa conhecer e discutir estas tão sérias problemáticas para as sociedades contemporâneas, designadamente, porque não podemos ignorar que, para além dos discursos institucionais e ecléticos sobre a dimensão simbólica dos Textos Sagrados, a sua leitura, interpretação e representação, por parte dos respectivos crentes, tende a aproximar-se do sentido mais literal das referências escritas e reproduzidas nomeadamente por via oral - inclusivé por razões que se adequam à defesa da fé e, mais ainda, do dogmatismo.
A questão é, aliás, crucial e reconhecida como tal. Vejamos: é ou não desta problemática que emerge o sentido da promoção e defesa de valores e princípios como são os que se referem às sociedades laicas à liberdade religiosa, à diversidade social e à multiculturalidade?... mais: é ou não do reconhecimento deste problema que decorre a justificação do esforço pelo desenvolvimento do Diálogo Inter-Religioso em que se têm envolvido os mais prestigiados líderes das diferentes religiões do planeta? ... é ou não aqui que reside parte significativa do fundamento do Diálogo Inter-Cultural?... afinal de contas, é da PAZ ou melhor, da construção social das condições culturais necessárias e suficientes para a sua consolidação e do respeito pelos Direitos Humanos, que se trata... e aqui, convém não esquecer!, é fundamental - senão mesmo determinante!- a médio e longo prazo, o papel da Educação e da Escola.
(Este texto será também publicado no A Regra do Jogo)
Cara Ana Paula
ResponderEliminarNão tive ainda, oportunidade de ler os livros destes dois autores, o que penso fazer rapidamente.
Ainda bem que Saramago escreve o que bem lhe apetece sobre a biblia, que eu tenha conhecimento, não sofreu qualquer tipo de ameaça à sua integridade como ser humano,nem poderia ser de outra forma.Pelo contrário tem existido por parte da igreja uma enorme disponibilidade para o debate, o que contrasta com a permanente agressividade de Saramago.
E não sofreu qualquer tipo de ameaça ou confronto mais radical porquê? Exactamente porque os leitores da biblia e seus seguidores nas multiplas facções religiosas, não seguem a biblia e seus textos de forma literal, é aqui que a religião cristã faz toda a diferença. Os cristãos têm implícito que o que está escrito na biblia é literatura datada, marca de um tempo, fazem a destrinça entre o que são os valores da civilização e as imagens lá criadas para sucistar a crença e fantasia naquilo que está para além de...ao contrário de alguns fundamentalistas islâmicos, estes sim levando o Corão à letra -caminho que Saramago sugere -aí escrever um livro sobre o Corão parece-me já matéria de algum risco. Claro que os fundamentalistas islâmicos, sabem reconhecer, o Corão é um alibi, para a violência por eles cometida. Não vão "perder tempo" com um escritor menor.
Voltando a Saramago; é compreensível, sendo ele um homem eminentemente religioso, sente necessidade de acreditar num dogma: se não tiver a agilidade suficiente para descirnir entre o são valores e a fantasia, é muito dificil, senão impossível acreditar em algo que o transcende; daí a sua revolta, negando a existência de Deus, mas isso é o caminho pessoal de Saramago, muito respeitável por sinal.
Uma primeira e primária aproximação a este problema cada vez mais importante e cada vez mais ignorado: as religiões de um só livro tendem a cristalizar a ortodoxia e o dogmatismo e a sentirem-se violentadas ao mais pequeno sinal de discordância (veja-se as barbaridades ditas pelos vários teólogos). Eu diria quanto mais livros melhor, contrariaemnte aos incendiários da Biblioteca de Alexandria. Claro que há, por exemplo, os acérrimos defensores do Bhagavad Gita mas entre Vedas e Upanhishads e Puranas há, na Índia, muito por onde escolher.
ResponderEliminarCaro João,
ResponderEliminarobrigado pelo seu comentário a que me ocorre acrescentar que, apesar de tudo, a vivência interna das múltiplas comunidades religiosas inclusivé cristãs é um "mundo" mal conhecido da generalidade dos não-praticantes. Contudo, independentemente das posições oficiais da Igreja Católica, outras comunidades digamos assim para-católicas e não-católicas mas, cristãs, fazem leituras integrais da "letra" da Bíblia... no mundo dito ocidental há talvez condições externas de relativização dessa dimensão "integrista" proporcionadas pelo tipo de organização económica, social e cultural que conhecemos... contudo, com o ritmo das crises, nomeadamente socio-económicas, alteram-se também as disponibilidades comportamentais e disso tem sido exemplo a mudança perceptível na opinião pública a propósito, por exemplo, da imigração. De qualquer modo, o que urge salientar é que nos cabe prevenir e evitar, na medida do possível, a eclosão de qualquer tendência fundamentalista... para bem de todos nós.
Obrigado, Fernando, pelo pertinente contributo que aqui regista. De facto, a pluralidade das fontes e o seu reconhecimento concorre decisivamente para o equilíbrio das coexistências e das convivialidades sociais, condicionando, de certa forma, a tentação centralizadora dos mais "acérrimos defensores" de uma ou de outra. Os textos sagrados da Índia são notáveis também pela plasticidade conceptual que permitem à leitura e interpretação... e, também eu considero, "contrariamente aos incendiários de Alexandria" que tão oportunamente refere, que quanto mais conhecimento e diversidade, melhor. Os livros não fecham caminhos; por isso, vivam os livros e a cultura que tantos caminhos nos abre e deixa para percorrer! :)
ResponderEliminarJoão diz que "os cristãos têm implícito que o que está na biblia é literatura datada ...". Mas eu pergunto que cristãos? O papa, os bispos, os presbíteros, os diáconos,os mais esclarecidos e informados? E todos os outros, mortais comuns, que são a maioria, aqueles que acreditam que o inferno é um lugar físico, aqueles que rezam para o filho passar no exame, para que o negócio lhes corra bem, para que o seu clube ganhe o jogo, para que deus castigue o seu adversário? Para estes todos, que são mais do que todos os escribas imaginam (basta falar com as pessoas, no dia-a-dia), de facto, deus é um personagem vingador, castigador, justiceiro, que intervém ou pode intervir em todos os actos concretos da vida das pessoas. E quem criou essa imagem na cabeça das pessoas foi a igreja, católica, apostólica e romana, ao longo dos séculos, com todo o obscurantismo em que viveu, ensinou e oprimiu. Agora, já não é assim? É verdade, e honra lhe seja feita porque foi capaz de evoluir para compreender a sociedade moderna; mas a sua marca histórica está ainda na cabeça de muitos cristãos.
ResponderEliminarE não foi a igreja que fez, durante muito tempo uma leitura literal da bíblia?
Saramago só erra porque fala como se a ijreja ainda faça essa leitura literal, que não faz; mas muitos cristãos fazem-na. E o que dizer dos criacionistas? De facto, não estamos só a falar de um conceito errado na cabeça do Saramago. É um conceito ainda enraizado na cabeça de muita gente.
A igreja ainda não fez todo o trabalho necessário para eliminar todo o mal que, durante séculos, meteu na cabeça das pessoas.
vcs são minha especialidade a encobrir..bem hajam
ResponderEliminarCaro Manuel Carvalho e Silva,
ResponderEliminarAgradeço-lhe, sinceramente, a leitura clara do problema e, em especialmente, a sua partilha neste espaço.
Bem-haja!... e... volte sempre!
Caro Fumeiro,
ResponderEliminarNão percebi o sentido do seu comentário?! ... de qualquer modo, obrigado.
Ana Paula,
ResponderEliminarbom texto.
As verdades do quotidiano têm de ser ditas. O que interessa em todo este assunto é o que as pessoas integraram nas suas cabeças, não como os especialistas, que foram treinados para o fazerem, se pronunciam agora. O Carvalho da Silva, e bem, aflora essa situação.
A leitura normal é a literal. Tudo o que disserem sobre o resto é especulação, e não tem em linha de conta a realidade cultural dos diferentes povos que tomaram conhecimento do livro sagrado durante séculos.
Que teria sido do cristianismo se Constantino, imperador romano, não se tivesse tornado cristão ? É uma pergunta que não é aflorada. E de que forma os povos recém cristianizados tomavam conhecimento dos textos ?
Já recentemente, aquqndo da nossa infância, como nos eram explicadas as estórias da Biblia nas catequeses e nas aulas de religião ? Era através da descrição literal das acções, e de toda a fantasia que transportavam, ou pela interpretação adequada ?
E se formos para os grupos da população menos letrada, como apreciam os textos ?
Já para não falarmos dos reaccionaríssimos grupos criacionistas que ainda polulam por todo o mundo.
A leitura do autor de Caim é a natural, a literal. É essa que a grande massa popular entende.O resto são elaborações de interpretação para manter viva uma chama e que não estava, certamente, na mente dos autores iniciais.
Um abraço.
T.Mike,
ResponderEliminarExcelente problematização, meu amigo. Obrigado! De facto, não faz sentido, nos dias que correm, ocultar ou ignorar a verdade que é o lado mais claro e justo da realidade... nem dissimular o conhecimento apenas porque a mediatização, cobrindo o polémico porque tradicional e politicamente correcto (será?), remete a liberdade e a capacidade de pensar para os "cantos escuros" de um tempo que não serve os interesses da Humanidade que se quer solidária e objectiva, capaz de enfrentar os desafios da contemporaneidade. Sinceramente, obrigado, Miguel!
Um abraço.