segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Saramago - 2 Pesos e 2 Medidas?!



Não li "Caim"... mas, claro que o irei ler. Por ora, registo apenas que dá a pensar o raciocínio dicotómico, de claro pendor etnocêntrico, que a sociedade portuguesa tem evidenciado a propósito do lançamento deste livro e das declarações que, sobre ele, tem feito o seu autor... no entanto, quando Salman Rushdie publicou os "Versículos Satânicos" e o mundo islâmico o condenou, o Ocidente levantou a voz contra a falta de liberdade e tolerância; de igual modo, quando, mais recentemente, surgiram no Ocidente cartoons que o pensamento islâmico interpretou como ofensivos, de novo se fizeram ouvir as mesmas vozes pela liberdade de imprensa, de expressão e de pensamento. Agora que José Saramago condena, após um exercício heurístico e hermenêutico que o vincula como autor, livre na exegese, no pensamento e na expressão, valores como a crueldade (alguém pode alegar que o episódio de Abel e Caim não é cruel?) erguem-se as vozes, desta vez não em nome da liberdade mas, do insulto que chega ao ponto de considerar a escrita e a publicação desta obra como reflexo de uma "atitude anti-Nobel"... 2 pesos e 2 medidas para Saramago ou entre a islamofobia e a cultura judaico-cristã? ... mas, afinal, a pedagogia social e os limites à liberdade de expressão alguma vez foram critérios para a atribuição do Prémio Nobel da Literatura?... enfim... eu que, desde sempre, defendo a liberdade de opção no contexto da diversidade religiosa e que, comprovadamente, respeito sinceramente a fé dos homens e das comunidades, não compreendo a legitimidade intelectual destes "ataques" a Saramago... ou melhor... verifico que, de facto, a sociedade portuguesa dá muito - mas, mesmo muito! - a pensar.

23 comentários:

  1. Ia escrever um post exactamente no mesmo sentido lá no Rochdo amanhã, Ana. Concordo em absoluto com tudo o que escreve aqui. Assim, limitar-me-ei a acrescentar um ligeiro pormenor sobre "O Evangelho" e as caricaturas de Maomé e a forma acalorada como os ocidentais reagiram contra a fúria dos muçulmanos.

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  2. Até que enfim um texto honesto e desapaixonado.
    Ana, subscrevo na íntegra o que escreveu.
    Passei a tarde a ler textos, uns pró outros contra, nenhum que fosse, desta forma, equilibrado.
    Saramago tem todo o direito, como toda a gente, de pensar e escrever o que deseja e publicá-lo e publicitá-lo.
    Saramago é ateu, portanto, até o direito tem de fazer proselitismo ateísta.
    Não entendo o afã a que tanta gente se devotou a denegrir o escritor só porque o mesmo publicitou o seu pensamento.
    Um padre chamou-lhe jacobino, que é uma designação política, a propósito das suas opiniões sobre a Bíblia ( que é um livro religioso), e outros, muito piores e dilatados epítetos.
    As confissões dizem normalmente do Ateísmo o que o profeta não diz do toucinho e nunca vi publicamente ninguém se levantar contra essa forma de pensar.
    Na realidade, dois pesos e duas medidas.
    O Livre Pensamento, uma conquista das Luzes, ainda levanta problemas no Portugal do sec.XXI.
    Um abraço grande.
    PS.: É claro que também vou ler o livro e depois digo se gostei da obra ou não, que é, afinal, o que é importante.

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  3. Cara Ana Paula Fitas,

    Penso que o facto de Saramago não estar sob ameaça de morte faz toda a diferença; nos dois casos que enunciou foi essa realidade que determinou muitas das posições.
    De facto, esta superioridade moral de Saramago não se revelou agora, mas tem continuamente vindo a revelar-se...
    Em boa verdade, amanhã apenas Saramago lembrará as suas palavras pois não existe qualquer fatah (penso que se escreve assim) que as recorde.

    cumprimentos
    Paulo Lobato

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  4. Carlos,
    Obrigado pelas suas palavras. Amanhã irei ao Rochedo ler o seu, seguramente, útil e interessante "apontamento" sobre esta matéria.
    Um abraço amigo,
    Ana Paula

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  5. Ora Ana Paula, guia de maus costumes? pode ter sido, até todos podemos saber disso... mas já não se pratica o Antigo Testamento....
    Veja lá se o homem, não quererá apenas protagonismo. É que tem uma superioridade moral, que faz favor!... Pois tem, porque afinal, deveria ter dito isso do Alcorão. É que ainda se pratica à letra, o que nele está escrito! Aí sim, seria urgente uma chamada de atenção. Não sou intelectual e pouco entendi das palavras caras... mas se o Saramago tem tanta coragem, deveria atacar o mal, onde ainda existe. Ía ser a verdadeira estrela! E possuidor de grande coragem! Bem sei que vai pensar que é ignorância da minha parte, mas será que foram os Senhores, que querem a toda a força,acabar com a religião, que encomendaram a obra?! Ás tantas... Com este atribuir de prémios Nobel tão sui generis, como foi o do Obama, se calhar tem contrapartidas...
    Nem sequer sou religiosa, nem li o livro, mas considero que o Saramago tem jeito para o Marketing... :)) dele próprio! Tipo Salvador Dali. :)
    Fica tão bem a humildade... isto é, se querem ser considerados mentes brilhantes!
    A tolerância?! onde?! onde?!

    Beijinho da fada malfadada! :))

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  6. Caro Paulo Lobato,

    Tem toda a razão... felizmente, sobre Saramago não paira a ameaça de nenhuma "fatwa"... e essa é uma diferença muito, muito importante. Por isso, é pertinente que não permitamos que a liberdade de expressão que vincula cada autor forneça pretextos capazes de suscitar fundamentalismos, venham eles de onde vierem. Manter o discernimento, é preciso e é urgente.
    Obrigado pelo seu comentário.
    Um abraço,
    Ana Paula

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  7. T.Mike,
    Obrigado pela leitura lúcida e distanciada, tranquila e objectiva que aqui partilha. Vamos então ler o livro e depois comentaremos. Combinado?
    Um grande abraço.
    Ana Paula

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  8. Querida Fada do Bosque,

    Compreendo o que escreve mas penso que devemos manter o discernimento e compreender que, em matérias tão sensíveis, a literatura é sempre a arte da metáfora... ontem como hoje.
    Um beijinho sorridente :)

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  9. Cara Ana Paula
    Também tenho estado a comentar este assunto no blogue que também gosto muito, o Foguetório do Paulo Lobato, onde disse mais ou menos isto:
    Saramago foi de facto inconveniente, pouco diplomata, eventualmente arrogante, mas também corajoso. É natural que as pessoas se sintam ofendidas porque a religião as toca no âmago. Mas é certo que a Bíblia, designadamente o Antigo Testamento, e o Corão, alegoricamente ou não, estão revestidas de muita crueldade, a sua mensagem não é clara e tem estado sujeita às interpretações dos religiosos dominantes de cada época. Por isso, as religiões (não todas) tem sido responsáveis por muitas guerras e por muita crueldade que se tem praticado ao longo dos tempos. Pois todos se arrogam donos de verdades absolutas, que só por isso passam logo a relativas.
    E por vezes é preciso assim uns abanões nem que seja para as pessoas reflectirem sobre o assunto.
    Um abraço

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  10. Cara Benjamina,
    Penso que a dimensão a que se refere, a do "abanão" que por vezes ajuda a despertar - pleo menos para a reflexão- foi o objectivo que esteve presente na opção de Saramago pela abordagem de uma matéria tão delicada e, previsivelmente, tão polémica... e, sabemo-lo bem, o tom provocatório é muitas vezes um instrumento de alguma "terapia de choque" que, reconheçamo-lo, nos tempos que correm, é importante acontecer para que não fiquemos anestesiados com a informação/opinião pré-configurada com que nos vão vendendo "representações" do mundo e dos "outros"... As verdades absolutas pertencem a um tempo que não é o nosso e, as crueldades que noutros tempos eram marcadores para a regulação dos comportamentos, não é, seguramente, o que desejamos para a sociedade de hoje... por tudo isso e também pela sua corajosa liberdade de pensamento, obrigado , Benjamina.
    Um grande abraço.

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  11. Atrevo-me a dizer mais do que Saramago, que corajosamente disse o que muitos de nós pensam, mas digo mais… não é só a bíblia que nos transmite estes horrores, as praticas daqueles que tem de passar a mensagem e criar novos fieis também se regem pela mesma cartilha.
    Por motivos que não vêem ao caso, enquanto criança fui criada num colégio de freiras para seguir o sacerdócio, e os horrores praticados eram de tal forma desumanos que ainda hoje tenho pesadelos. Pensei que os tempos tinham mudado, com os direitos das crianças, a liberdade e o evoluir do mundo, no entanto à 4 anos visitei uma das minhas colegas de infância, que vive num mosteiro e as praticas continuam as mesmas!
    Os castigos corporais, o ficar deitada no chão de mármore durante horas para cumprir penitencias, o passar noites sem dormir de pé a meditar, ente outras praticas absurdas ainda são aplicadas em crianças que não tem mais de 8 anos.
    Isto num tempo em que os nossos filhos não podem sequer levar uma palmada em publico pois corremos o risco de vir a protecção de menores.
    A bíblia não obriga a que isto se passe, mas que forma pessoas para colocar estas medida em pratica lá isso forma!

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  12. Antes de mais, obrigado, por este contributo que em muito esclarece uma dimensão da realidade contemporânea de que temos pouco conhecimento. A educação infantil é de facto um mundo a que a sociedade deveria dar mais atenção... saber que actualmente, por códigos educativos específicos, as crianças são sujeitas a regimes disciplinares tão rigorosos é confrangedor - nomeadamente porque, no contexto de uma sociedade democrática cujas regras não coincidem com essas práticas, os efeitos psicossociais e culturais desses modelos educativos podem ser devastadores... o mais assustador é, contudo, atribuir o exercício dessas práticas a valores religiosos... Um abraço amigo.

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  13. QUERIDA ANA PAULA
    SÓ UM TEXTO COMO O SEU, PARA ME LAVAR A ALMA E ME TRAZER UM POUCO DE PAZ, SABENDO QUE ALGUÉM DE QUE MUITO GOSTO E QUE MUITO SABE-E TÃO BEM O EXPRESSA- , PENSA EXACTAMENTE COMO EU.

    OBRIGADA POR EXISTIR E PARTILHAR O SEU PENSAMENTO.
    UM BEIJO
    TINA

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  14. Cara Ana Paula
    Porque gosto de aprender por esta nossa candeia, aceite um selo que está aqui.
    Um abraço

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  15. Olá cara Ana Paula
    Porque gosto deste blogue,deixei lá no Sustentabilidade é Acção um selinho "Seu blog é VIP" para "A Nossa Candeia", sem qualquer "imposição". Apenas uma lembrança.
    Com um abraço.

    (nota: não sei se já tinha vindo aqui ontem dizer isto, o cansaço faz destas coisas, se o fiz, esqueça este comentário)

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  16. Querida tina,
    Obrigado pelas suas, sempre!, tão reconfortantes palavras! Sinceramente! Ainda bem que veio até aqui... nos tempos que correm, o preconceito e o medo avassalam as almas e ficamos mais sós nesta constante confrontação com um mundo menos cordato do que seria suposto. Por tudo isto, é recíproco o agradecimento e a alegria por estes encontros, estas partilhas e esta Amizade.
    Um beijinho :)

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  17. Olá Manuela!

    Vou já ver o selinho!... que agradeço com muito reconhecimento e amizade... quanto a cansaços, nada de preocupações... é recíproco!... um beijinho e... até já (vou ali ao Sustentabilidade e já volto) :)

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  18. Que coisa linda, Manuela!... é um mimo de um Selo! Muito, muito obrigado!... Já o afixei na barra lateral das Causas e dos Reconhecimentos! Vou então fazer o que me é devido e dar continuidade ao Blog VIP "Just Perfect"!!!
    Apetece-me premiar um blog que cumpre todos os requisito... o "Sustentabilidade é Acção" - conhece?!... entre outros, claro!... Beijinho :)

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  19. Cara Ana Paula,

    Venho da Benjamina e li atentamente o seu belíssimo texto.
    Lá como aqui, deixo a informação que talvez por ser completamente agnóstica, ter lido o Evangelho Segundo Jesus Cristo e adorado, estou é morta por pôr as mãos (olhos) no Caim.

    Não o achei sequer inconveniente...Saramago, como qualquer outra pessoa tem o direito de dizer as verdades absolutas ao Mundo, se está em directo na TV, melhor ainda, ou por acaso ele disse alguma mentira???

    Não sejamos fundamentalistas... eu aceito todos os que acreditam noutros credos, porque não se há-de aceitar quem não acredita???
    Fico por aqui...

    Parabéns.

    Fernanda

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  20. Fernanda,
    Obrigado por ter vindo até aqui e, muito especialmente, pelas suas palavras que, se me permite, aqui reproduzo por as subscrever, na íntegra: "(...) eu aceito todos os que acreditam noutros credos, porque não se há-de aceitar não acredita??? Fico por aqui" - é, aliás, exactamente isso que mais dá a pensar na sociedade portuguesa: os que não concordam, não podem, sequer, aceitar e sentem-se impelidos a fazer disso um escândalo púbico? Bizarrarias ou idiossincrasias culturais relativamente às quais penso escrever algumas coisas... não sei quando... de algum modo, sempre... umas vezes nas entrelinhas, outras na problematização... enfim... vale muito a pena pensar para discutir e compreender a sociedade portuguesa. Um abraço e... volte sempre! :)

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  21. Cara Ana Paula
    De tão previsível esta pseudo polémica que quase não vale acrescentar seja o que for, mas, lendo o seu texto sou impelido a dizer o seguinte:pode Saramago dizer o que lhe apetece sobre a biblia, pena que só tenha descoberto que está cheia de horrores já em provecta idade; claro que sim.
    De Saramago escritor esperaria uma leitura da biblia mais sofisticada, não tão básica e literal. A biblia nomeadamente o antigo testamento está repleta de mitos, metáforas, imagens que retratam o tempo em que foi escrita.
    A igreja católica -porque é a igreja católica que Saramago ataca - não dá ênfase ao antigo testamento.
    Sramago pode rotular a igreja de quadrilha?! Claro que pode, ele sabe que sim, mas não pode esperar que a igreja não reaja...é exactamente aqui o busílis desta tonta questão; Saramago não tem poder de encaixe para os que o confrontam, não aceita a critica ao seu dogmatismo, provavelmente resquícios de um outro dogma, este sim causador de uma hecatombe no mundo moderno.
    Saramago como um dos grandes escritores desta era, deve deixar que a sua obra fale por si, senão arrisca-se a que o conheçam no futuro não por como um grande escritor mas por propagandista das causas perdidas.
    Coragem era Saramago ir a Cuba e denunciar o atropelo aos direitos humanos; coragem era denunciar a Coreia do Norte, a China e por aó fora.
    Coragem;é Saramago é admitir os gulags, o colapso da ideologia comunista: isso sim é coragem; agora "bater" na igreja é tão fácil e previsivel que até o padre da minha freguesia leva esta "polémica" com um sorriso trocista.

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  22. Caro João,
    Obrigado pelo seu comentário. Penso, antes de mais, que a abordagem em causa conduziria a reacções que são, por isso mesmo, previsíveis... por isso, o que, neste caso, é mais curioso é a reacção dos que não integram o aparelho eclesiástico. Quanto ao que o João aponta como exemplos do que entende por coragem, cabe-me dizer que estamos perante um outro assunto e que cabe a cada autor a escolha temática dos seus livros, cabendo aos leitores a liberdade de os lerem ou não e de deles gostarem ou não. Eu, como estudiosa da área, tenho neste livro um enorme interesse porque a liberdade crítica, de expressão e pensamento, é, também, nesta matéria, da maior importância nos tempos que correm.

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