"Vou lá Visitar Pastores - Exploração Epistolar de um Percurso Angolano (1992-1997)" é o nome de um verdadeiramente notável trabalho de Antropologia, realizado por Ruy Duarte de Carvalho, Português de Santarém por nascimento, Angolano por opção de nacionalidade e residente na Namíbia... Morreu hoje. O Homem que escreveu, além da poesia e da ficção, um dos mais extraordinários discursos antropológicos sobre as populações do Sul de Angola, em jeito epistolar, como quem retira do olhar simples do viajante, a essência racional que subjaz à diversidade étnica... "Vou lá Visitar Pastores..." é um livro essencial de que cito passagens retiradas "à toa", com o objectivo de motivar a sua inesquecível leitura: "(...) Traz botas para andar e o tabaco que fumas, caso contrário terás de contentar-te com a ração de Jucas que eu te der. Muni-me do bastante para repartir à vontade e chega também para ti, se fôr preciso. (...) Uma viagem depende de tais coisas e não tolera falhas. Deixa connosco. Traz a atenção e o coração abertos. A Angola que eu sei espera só por ti. (...) Se aquilo que tenho vindo a dizer-te for de molde a prender a tua atenção e a estimular a tua própria «imaginação sociológica», terás facilmente aprendido a substância de um longo processo em que a mobilidade territorial, histórica, cultural, política e económica jogou o único papel estruturante em presença. (...) Para ti, os utensílios que tens à frente «é tudo igual» e o leite que chega até ali também o é, mas, hás-de constatar que não se enchem as cabaças todas uma após a outra, pegando na seguinte quando a anterior estiver cheia. O leite de umas kindas entra numa e o de outras noutra, por aí fora, e são usados funis diferentes com cada uma delas. Quer dizer, nem o leite nem os instrumentos do leite são utilizados indiscriminadamente. O que determina esta complexidade é a proveniência do leite, são as vacas donde esse leite saiu. (...) Compliquei muito? Sim, instaurei vários enigmas para uma mentalidade ocidental como a nossa, só preparada para aferir a colocação social dos produtos de consumo a partir das capacidades aquisitivas que lhes darão acesso. Aqui entram em jogo outras capacidades e qualidades sociologicamente configuráveis. Levarás todo o curso da tua viagem a tentar dar conta disto.(...)" ( pg.16, pg.95 e pgs. 170/171 in ed. Círculo de Leitores, 2000)... Ruy Duarte de Carvalho, o Homem e o Antropólogo que, no Convento da Arrábida, dizia assim, numa intervenção pronunciada para altas individualidades dos países africanos lusófonos no contexto de um Seminário Internacional restrito e dedicado ao estudo e análise dos "sistemas de educação formal e informal em África": "(...) porque, meus caros, desculpem que lhes diga: primeiro é preciso dar de comer às pessoas e só depois vale a pena estarmos a preocupar com questões como a dos sistemas educativos... porque a verdade meus amigos, a verdade é que a situação é de tal modo que, todos os dias de manhã, ao levantar, um cidadão tem que se sentar na cama para se preparar para enfrentar a realidade... os miúdos a pedir...(...)"... Anos mais tarde, voltei a encontrá-lo em Beja onde, apesar de falar sobre identidade e desenvolvimento regional, a sua alma calava porque a verdade fala mais alto dentro de quem a escuta e muitos há que, não a conhecendo, não estão sequer em condições de a reconhecer... Ruy Duarte de Carvalho é um Homem Inesquecível nomeadamente porque viveu como um Antropólogo do Essencial... e, também por isso, independentemente do presente, será a História a fazer-lhe Justiça -nomeadamente quando Angola e a África tiverem resolvido os seus problemas fundamentais e puderem, finalmente!, dar a importância devida às Ciências Sociais em que se vai guardando a sua memória e a sua essência identitária. Obrigado Ruy!
Cara Ana Paula Fitas
ResponderEliminarSingela Homenagem a Ruy Duarte de Carvalho, homem de obra multifacetada que merece ser mais divulgada. Simbolicamente, deixo um dos seus poemas:
"Profecia de Nakulenga"
(origem Kwanyama)
"Algo de estranho se agita nas águas
algo de estranho se arrasta na terra.
Era longe, ficou perto, agora é cá.
E o povo já foge.
Talvez até caia
um pau de omuhama
na estrada a indicar que para o rei
a morte vai chegar
a vida é breve.
Eles vêm de um país muito distante
e trazem para dizer coisas diferentes
que é preciso avaliar com atenção.
Cruzava o país e dos nobres eu via
os ricos currais.
Renovo a viagem
e que vejo agora?
Dos nobres agora não vejo os currais
mas vejo dos brancos
suas construções"
(Ondula, savana branca)
Um beijinho e um abraço amigo e solidário.
Ana Brito
Cara Ana Brito,
ResponderEliminarLindissimo poema este que escolheu para homenagear o Grande Ruy Duarte de Carvalho :)
Obrigado!
Um beijinho e um grande abraço amigo e solidário :)