domingo, 31 de março de 2013

"Um País de Gestores...

"Dantes dizia-se que Portugal era um país de doutores. O que deveria ser um sinal de emancipação, o saber que no país os doutores derramassem sobre processos e incultos, era antes uma separação entre os intelectuais e os simples (Gramsci), uma colocação do saber em estatuto, doutor era distância, título, obrigava a reverência, vénia, o Sr. Doutor ainda não chegou, depois pergunta-se ao Sr. Doutor, sim, as azevias são para o Sr. Doutor.
Quem, vindo de baixo, não queria o sol de ser doutor, quantos não renegaram as origens nesse trajecto que fizeram de costas voltadas para a miséria que imperava? Não foi essa, e é, voracidade de ascensão, que mata em muitos o que tendo sido revolta e sentido de justiça na juventude se transforma em oportunismo e sacanice (Jorge de Sena, O país de sacanas”) na condição adulta? Ele é óbvio que há também oportunistas natos e até criaturas que já vêm com almas pidescas, nesses habita a inveja nas formas que a literatura naturalista mais experimental traçou como sinal de certa monstruosidade biológica – já não estamos aí, na unilateralidade da explicação dos comportamentos, mas a genética recolocou o problema da determinação de certos comportamentos. O que leva um tipo a, sendo Ministro das Finanças, torturar um país inteiro com o exercício das suas imposturas supostamente ciência económica? O que explica um Gaspar?
O problema não era entretanto, tanto “doutor” no ar e, na realidade, tão poucos doutores, mas o analfabetismo, o outro reverso da estrutura pátria, o que tornava o ser-se doutor essa intangibilidade por vazio no que sobrava sociologicamente falando, esse direito de pernada do título sobre o que fosse que se apresentasse, esse chego-me para o lado dos de baixo, esse aceno cheio de “respeitinho é que é preciso” dos do meio remediado - são os piores e mais vorazes, preenchem nas administrações públicas os cargos de micro-poder, estão impantes dessa responsabilidade e não hesitam no processo disciplinar, no amesquinhamento de terceiros sob a sua alçada.
Esse furioso acesso ao bem estar que algum poder, ou muito poder – ou mesmo o poder de Estado, e neste o poder policial, o arbitrário gesto de mandar torturar ou matar, de muitas formas – permite e foi permitindo, constituindo-se famílias de poder longevas, marcou gerações de apaniguados do regime e dos regimes que se foram sucedendo à “velha senhora”. Os poderes têm sempre clientelas. Assim como a riqueza se reproduz, o canudo, qualquer que fosse, o de ser-se engenheiro doutor ( "o Senhor Engenheiro hoje engraxa? Engraxo na baixa" Alexandre O'Neil) ou médico doutor, ou advogado doutor, ou doutor em finanças ( que arrepio!), permitia ( agora é uma entrada directa no desemprego, a não ser que se pertença a uma juventude partidária) esse acesso aos patamares de reprodução da riqueza. E obviamente esse estar ao serviço da reprodução da pobreza enquanto riqueza para si mesmos.
Mas esse D. R. que se sucedia na boca de todos os “indiferenciados”, nada dizia do verdadeiro saber de muitos doutores. Os que detinham um saber e erudição verdadeiros e o punham ao serviço de todos – tentavam pôr – eram doutores. Ainda agora faleceu um grande Doutor, o Dr. Óscar Lopes, referência incontornável para todos os da minha geração e anterior. Fiz o meu exame de literatura do 7º ano com a sua, e do Dr. António José Saraiva, História da Literatura. Usei o livro proibido para efeitos de exame, era muito completo: à literatura e aos aspectos estilísticos juntava, de modo esclarecedor, os enquadramentos históricos e sociológicos. Era um livro que nos abria o país fechado na história oficial.
O saber nunca fez mal a ninguém, o falso saber, que hoje é generalizado e faz parte das estratégias da aparência, esse cola-se a uma qualquer imagem desejada. O marketing é isso: a promoção da superficialidade da imagem que esconde a substância do que desenha (design). Quando se diz que a imagem isto ou aquilo, não se está a falar do que é a imagem para além do que significa no design, mas do que parece a própria forma desgarrada e absoluta, em estatuto de aura e fetiche, sendo todas as estratégias viradas para que o que pareça convença contra aquilo que possa ser, ou na ausência total do que esse aquilo seja ou possa ser. É a sociedade do espectáculo. Trata-se de um interminável tráfico de fluxos de imagens ao serviço de operacionalidades funcionais de um vazio activíssimo. É isso que explica que não saiamos da crise. Enquanto tudo o que se faça ao coma crítico da economia europeia forem paliativos, cuidados paliativos, o que se prolonga é o coma. Só se sai disto, não com as reformas estruturais que não o são mas medidas radicais ao serviço de um alargamento do fosso que sistema cria entre ricos e pobres, com um revolução das medidas, com uma total alteração de paradigma.
O nosso problema hoje é a falta de doutores e sermos um país de gestores. As últimas gerações no poder são gerações de gestores, são conhecedores de vazios e chavões, são obcecados da palavra inovação e nada inovam nem inventam, a maior parte formados nessas universidades de cursos rápidos que aproveitaram as tais oportunidades de mercado – um mercado de ascensões sociais aceleradas – para vender um saber vulgarizado, agora abastardado ao ponto a que chegámos de se produzir iliteracia em ambiente universitário, todo ele muitos eventos e performativo.
O problema hoje é que somos um país de gestores e de engenheiros rápidos (mesmo aos doutores o que se pede é que sejam gestores) pessoas incapazes de uma visão política culturalmente informada, incapazes de perceber o mundo para além do seu horizonte salarial e tráficos possíveis alcandorados na posição política. A política é uma forma de capitalizar. Diziam esses tipos que isso era em África, enquanto durou Abril e a porta da sacanice empreiteira negocial estava fechada. África, essa África de quem não a conhece, é o que eles são."       
Fernando Mora Ramos
(via Fernando Mora Ramos e Maria de Fátima Fitas no FB - a imagem é escolha da minha autoria)

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