domingo, 26 de abril de 2009

Benção Política - "o santo e a senha" de uma canonização anunciada...




Em pleno século XXI, a canonização de Nuno Álvares Pereira não deixa denotar outro significado senão o de um oportunismo político. De facto, por muitos argumentos históricos, nacionalistas ou patrióticos, que se possam apresentar, é incontornável que, no contexto da sociedade laica e democrática em que vivemos, elevar uma figura guerreira do século XIV ao mais elevado reconhecimento da Igreja Católica, com o apoio do Vaticano e de um grupo de portugueses, escuteiros, monárquicos e outros, se assemelha a uma prática de legitimação simbólica obscurantista, promotora da efabulação e reiteradora da confusão entre religião e estado... no fundo, trata-se, isso sim,de um desrespeito pela História enquanto conhecimento racional e de uma atitude anti-científica em que o valor da verdade é ultrapassado pelo recurso ideológico à manipulação populista. Dito de outro modo, no actual contexto de crise política e económica, utilizar a mentalidade nacionalista como elemento religioso é, inquestionavelmente, uma atitude política que se não pode desligar da intencionalidade do exercício de uma função social, a saber, influenciar, pelo recurso ao simbólico, os cidadãos através do reforço de uma radicalização de valores direccionados num sentido contrário ao que, tendencialmente, se promove na sociedade civil, a saber, a não discriminação, a paz, o entendimento, a concertação de esforços colectivos, o combate aos fanatismos, dogmatismos e nacionalismos. A perspectiva do "herói nacional", defensor da independência e da soberania é uma percepção alargada e abstracta que legitimaria actuações seguramente consideradas bizarras, ora por uns, ora por outros... e, se este facto não tem gravidade na medida em que se inscreve na possibilidade da afirmação pública do pluralismo democrático e da liberdade de expressão, podemos contudo imaginar um conjunto de reacções cívicas e políticas se, de repente, fosse decidida, com base nos referidos argumentos de promoção da defesa pátria, da soberania e da independência, a canonização de Otelo Saraiva de Carvalho, de Mário Soares ou, até mesmo, de Salazar... absurdo? Porquê? Para diferentes sectores da sociedade portuguesa, cada um à sua maneira e de acordo com os seus projectos político-ideológicos "salvou" a Pátria, respectivamente, do fascismo, da guerra, do imperialismo estrangeiro ou do comunismo!!! ... neste contexto, a canonização de Nuno Álvares Pereira em nada serve o bem-comum... porque esta canonização desemboca inevitavelmente na constatação da manipulação política levada à prática por sectores tradicionalistas da sociedade portuguesa com o aval do Vaticano, abrindo um precedente sério na regulação da separação dos poderes entre a Igreja e o Estado... este acontecimento, coincidindo com as recentes posturas da Igreja Católica no que se refere à forma como interpreta e julga os casos de violação de menores (lembremos o recente caso passado no Brasil, da excomunhão de uma menina de 9 anos por aborto decorrente de violação continuada), de prevenção da Sida (que Bento XVI arrasou com as declarações em África sobre o uso do preservativo), de discriminação da sexualidade entre pessoas do mesmo sexo (que os Bispos afirmam publicamente não deverem casar mesmo quando o que está em causa é o seu casamento civil e não religioso), de mobilização política dos poderosos lobbies económicos católicos e do acentuar da necessidade de se avaliarem as políticas familiares partidárias como critério para o exercício do voto, são, em contexto pré-eleitoral, atitudes que muito deixam a desejar no que se refere à intenção subjacente a todos estes procedimentos... porque, obviamente, não se trata de defender o interesse público mas, isso sim, de defender, corporativamente, outras realidades que implicam projectos sociais, políticos e ideológicos - cuja legitimidade, no quadro democrático da sociedade contemporânea, deveria assentar no assumir da natureza política do seu significado, de forma pública e frontal, de modo a reduzir os custos sociais da manipulação que resulta da utilização da religiosidade dos cidadãos!... contudo, fazê-lo implicaria diminuir ou anular aquilo a que Claude Lévi-Strauss chamou "a eficácia simbólica", razão pela qual, deste silenciar o carácter político deste evento, se deduz a consciência e a intencionalidade subjacente a todo este processo.

4 comentários:

  1. Até já me tinha esquecido... esses foram os meus livros da primária... coincidências dum raio...até a canonização tinha que ser no 25 de abril...praticamente...Excelenete texto. Análise sucinta, incisiva, numa narrativa solta e pragmática.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado, Luís... pois, o da 3ª classe também foi o meu (o da 1ª tinha uma capa côr-de-laranja!!! e uns bonecos feiotes)... e sim, horrível coincidência esta da data da canonização com o 25 de Abril...

    ResponderEliminar
  3. "Lá vamos com as calças rotas à espera que nos deem outras...".
    Era assim no meu tempo de miúdo.
    Saudades, nenhumas e, embora a tristeza, hoje dá-me vontade de rir-

    ResponderEliminar
  4. Obrigado, T.Mike... "Saudades, nenhumas e, embora a tristeza", fico feliz por hoje podermos rir. Um abraço.

    ResponderEliminar